Do que Marvão precisa(ria)...
- - Esta semana a notícia da retirada do processo de candidatura da vila de Marvão a Património Mundial pela UNESCO, revela bem como as coisas não mudam em Portugal, designadamente a forma de fazer política e o estado entre os níveis de interacção do Estado com o poder local. Dito de outro modo: a autarquia de Marvão olha para o Estado como se este fosse um bicho papão com quem tem vergonha de dialogar; o Estado, por sua vez, olha para a autarquia como se esta fosse um E.T. que aterrasse alí na Serra de S. Mamede em dia de incêndio. Desta interacção "altamente carburante" resulta uma síntese "admirável": um desastre político. E agora damos conta dessas cinzas... Foi precisamente isso que sucedeu com essa lamentável decisão, bem reveladora da desarticulação e da tremenda falta de capacidade e de comunicação políticas entre o Estado e o poder local, mesmo naqueles casos em que as cores políticas não coincidem, como é o caso: governo PS, autarquia PsD.
- - Depois, a justificação torpe (para não dizer cínica, hipócrita e até canalha) por parte do ICOMOS - que espelha bem a forma como actua no terreno, mais parecendo um burocrata bruxelense que, por não ter nada que fazer, de manhã entretém-se com o testicúlo esquerdo, à tarde brinca com o direito. Nos casos em que só existe um, alternam com uma ida à manicure e ao cabeleireiro. Ora vejam a qualidade da argumentação da Unesco que justifica o chumbo antecipado daa candidatura de Marvão a património mundial da Unesco: - "Fonte ligada ao processo da candidatura de Marvão a Património da Humanidade explicou à agência Lusa que um dos argumentos em que o ICOMOS se baseou para dar parecer negativo reside no facto de "Marvão não ser único", existindo outros locais no mundo com as mesmas características daquele sítio".
- - Dá vontade de perguntar a estes anormais da Unesco e ICOMOS se das vezes que foram a Marvão - se comportaram como o Samora Machel na Galeria da Gulbenkian, que via os quadros a uma tal passada de atleta que não tinha oportunidade de admirar nenhum em particular. Cortava sempre a fita destacado dos comparsas. Depois, já na estátua António José de Almeida, alí ao pé do Instituto Superior Técnico onde se pensa e faz ciência, sítio também muito bem frequentado pelas meretrizes de Lisboa e arredores, colocava a coroa de flores ao contrário... Tudo isto é uma enormidade. E nenhum jornal de grande dimensão ou até personalidade ou intelectual de nomeada pegou no assunto sem ser ao estilo da cobertura da agência Lusa, apenas para cumprir horários e obrigações mínimas de informar. Desconheço se a imprensa local fez alguma análise sobre a matéria. Se fez deixo as minhas desculpas, mas como é do conhecimento geral, esta micro-imprensa está muito dependente do poder local que no momento comanda as autarquias, por isso as notícias regionais tendem a reflectir o maistream institucional e a servir de correia de transmissão daquilo que as autarquias querem que se publique. Desconheço, contudo, se tal se passa no distrito de Portalegre. Mas Portugal não mudou assim tanto, e pelo que vemos nem mudou nada.
- - Por outro lado, e desconhecendo a formação cultural, intelectual e humana desses putativos técnicos da Unesco não me custaria nada supôr, com elevado grau de probabilidade, que se trata de gente muito pouco qualificada e recomendável, diria até gente inculta e com muito pouco mundo na cabeça - que deve ter atracado em Marvão como aqueles turistas pé-descalço, que chegam de canon digital ao peito e muchila às costas (tipo turista estrangeiro em Albufeira na década de 80) e depois parecem umas vacas loucas diante dos monumentos que têm carradas de história. Com tipos assim, aquilo até deveria fechar... Pergunto-me tantas e tantas vezes o que aquelas torres, aquelas paredes, aquelas ruas, aqueles edifícios com história pensam dos tipos das máquinas digitais todos os dias ali tirando fotografias...
- - O "nível" da argumentação aduzida por aqueles tipos só pode funcionar como um verdadeiro espelho das pessoas cujas imagens nele se reflectem. Ainda conseguem ser piores do que as práticas políticas que balizam o comportamento entre o Estado e o poder local em Portugal no séc. XXI.
- - Das duas uma: ou o ICOMOS oculta uma fundamentação técnico-científica mais séria e sistematizada, o que deveria explicitar em caso afirmativo; ou então, eles nem sequer avaliaram o projecto e, à última da hora, para demonstrar que não andaram sempre a dormir, socorreram-se daquela tirada de vão-de-escada: Marvão é igual a tantos outros lugares, por isso... kaput. Isto é, em bom português, uma enormidade. Aquela gente deveria ser demitida em bloco só por produzir aquele tipo de afirmação descontextualizada... Se há contexto que o revelem. Seria essa a sua obrigação profissional. Mas pelos vistos os graus de incompetência técnico-política não se limitam só ao sistema de decisão doméstico, já se transnacionalizou com a globalização. O que representa um outro perigo para a democracia.
- - Feita esta consideração de natureza politológica, talvez seja conveniente aduzir outras variáveis que podem contribuir para para engrossar o caudal de ideias que, por certo, a autarquia de Marvão já deve ter em abundância, a avaliar pelos resultados.
- - Ser hoje autarca implica ser um gestor de conflitos moderno. Mas implica mais do que isso. Supõe ter uma visão transversal da política, da cultura, da sociedade e memória histórica. Depois convinha que houvesse também alguma cultura tecnológica de forma a que as pessoas, os agentes do poder, nos diversos escalões do processo de tomada de decisão, não ficassem acabrunhados para comunicar.., só porque ainda não descobriram onde fica a arroba no teclado do PC.
- - Acresce que à medida que os processos globais se materializam em lugares concretos, eles continuam a operar sob o guarda-chuva regulador da soberania nacional, ié, do Estado. Pois neste caso é sabido que entre a autarquia e o Estado não havia ponta de interacção, e quando a prof. Isabel Pires de Lima emerge em Marvão já o desastre procovou os feridos. E é, assim, em pleno hospital, por entre feridos e litros de sangue, que essa decisão de retirar a candidatura de Marvão a património da Humanidade é proferida. Sem mais... Confesso que isto, no mínimo, é kafkiano. Isto é regressar ao séc. XIX em matéria de padrões políticos. Isto é, na forma e na substância, a antítese da civilidade política de qualquer República moderna, pluralista e avançada.
- - Constrangimento esse que nos recoloca duas questões nucleares: que papel deve assumir o Poder local em Portugal? Especialmente quando está em causa projectos de valia cultural desta envergadura. E, em 2º lugar, que papel o Estado deve desempenhar nessas eventuais parcerias a fim de potenciar as estratégias políticas para afirmar os resultados pretendidos.
- - No caso vertente, ficámos a saber que nem a autarquia existia políticamente, nem o Estado tinha nada a declarar. A coisa fez-me lembrar uma simples passagem nas portagens das velhas alfânfegas: nada a declarar... Parecia um funeral ainda sem o defunto. Foi triste, confesso. Depois, para agravar este drama mais ou menos cómico, o sr. presidente da autarquia de Marvão, utilizou uma expressão verdadeiramente surrealista, dizendo que Marvão estava de "luto"... ou coisa parecida. Pergunto-me, donde é que esta gente saíu? Que experiência de vida e política tiveram? Por que livros estudaram? Que referências política e morais têm??? E não me pergunto muito mais porque também não me é difícil fazer um décalogo de respostas... Aliás, e sem querer ser injusto ou arrogante, embora a paciência tenha limites, já há muito que tinha previsto este desfecho, faltando só acertar na hora e no minuto em que o desastre se consumaria.
- Marvão, de facto, precisa duma rotação de 360º. Precisa de saber "desnacionalizar" o seu potencial histórico e de saber vendê-lo como um projecto científico e cultural ímpar que é, ao invés das enormidades que os mangas-de-alpaca do ICOMOS debitaram.
- Marvão precisa de fomentar as actividades tradicionais que já tem, doçaria, agricultura, artesanato e turismo, mas, acima de tudo, precisa de saber atrair projectos tecnológicos de pequena e média dimensão que possam recortar novas configurações espaciais na região. Marvão precisa de ter uma linha de comunicação aberta permanentemente com o poder central, não para lhe pedir favor ou dinheiro mas para lhe potenciar os circuitos da informação, de forma a que essa mesma informação amanhã tenha um valor de conhecimento - e que esse conhecimento possa depois ter uma aplicação empresarial que beneficie o conjunto da população e da região.
- - Marvão precisa dessa articulação institucional para estimular a oferta de uma multiplicidade de actividades que hoje não dispõe. As quais não se devem apenas centrar no turismo pé-descalço, mas numa economia alternativa de manutenção que seduza gente nova, doutro modo "o jovem mais jovem" que por lá vemos é gente que já tem que se segurar às paredes para dar três passos seguidos. Habitação, ambiente, saúde, educação são áreas que deveriam ser exploradas na "fábrica" geral das ideias que, por certo, aquela vereação criativa deve saber incubar.
- - Examinar hoje Marvão deve interpelar-nos, e deve, acima de tudo, reforçar a ideia segundo a qual a geografia de lugares estratégicos - como é Marvão a quase 1000 m. de altitude -deve fazer-nos pensar à escala global, já que esse também é o estímulo das microgeografias e políticas públicas que se podem desenvolver dentro desses lugares.
- - Tentar garantir algumas destas valências e destas vantagens para o bem comum das populações de Marvão seria, creio, criar as condições psicológicas e políticas para o emergir duma nova classe de ideias e de projectos, duma nova dinâmica - que hoje manifestamente não existe - e, com isso, reagrupar um conjunto de formas de mobilidade de pessoas, projectos e capital - além da potenciação das Novas Tecnologias... - que fizessem de Marvão um nó duma rede de redes no risoma da globalização competitiva.
- - Marvão - pela sua beleza física e características geo-espaciais poderia dar cartas em qualquer parte do mundo onde fosse avaliado. Marvão tem um ADN geográfico que, ao invés do relativismo verberado pelos anormais da Unesco & compª - o pode distinguir dos demais projectos e lugares. Até porque as comparações além de indelicadas são muitas vezes injustas. O que falta a Marvão é capital-humano... e não de botas-de-elástico e de burocratas internacionais que até já se confundem com aqueles turistas de pé-descalço, os tais que num inglês sofrível fazem figuras tristes com a canon ao peito, a muchila às costas e o já tradicional pé-de-gesso que formiga por entre sandálias manhosas importadas alí de Badajoz.
- - Sem a criação destas dinâmicas geo-espaciais, destes recursos políticos, destas interacções entre os vários agentes do poder e da tomada de decisão, sem a capacidade de produzir significado na tal "fábrica" das ideias e das estratégias regionais - não vejo como Marvão e os marvanenses possam escapar a este ciclo vicioso de subdesenvolvimento político, social, económico e humano a que está exposto há décadas seguidas. Só o facto de Marvão recortar um espaço sub-nacional de valia patrimonial altamente singular, deveria servir para intensificar a atractividade perante o investimento estrangeiro, máxime com Espanha ali ao lado.
- - O problema é saber quem será o criador dessas novas configurações, dessas competências, dessas características endógenas (embora viradas para o exterior) que depois as políticas públicas autárquicas deveriam dar continuidade nos mais diversos segmentos: cultura, ambiente, saúde, inovação, desenvolvimento e o mais. O que significa que Marvão terá de criar uma coisa que não se faz só com dinheiro: a identidade própria. Quando o fizer, talvez conquiste a tal fonte de diversidade a que hoje está privada, daí a sua dependência quer do Estado - que o ignora, quer das agências especializadas da ONU (como é a Unesco) que o despreza. Sendo que a pior forma de o fazer foi fazer o que fizeram: dizer que, afinal, Marvão não passa duma fotocópia de tantos outros lugares. Que Deus lhes valha, porque nós aqui não fazemos milagres...
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