quarta-feira

Artigo de Vicente J. Silva: uma excelente análise sociológica ao narcotráfico dos media: o futebol

Vicente Jorge Silva Jornalista A selecção portuguesa joga hoje com o México e, apesar de já apurada para os oitavos-de-final, está ainda em aberto a conquista do primeiro lugar no Grupo D, além da incógnita sobre o adversário (a Holanda ou a Argentina) que irá defrontar a seguir. Desafiar o leitor para qualquer tema estranho ao acontecimento do dia - antes ou depois do jogo - não parece ter, assim, qualquer utilidade prática, como se pode ver pelos jornais e pelas televisões, já para não falar no Parlamento, que adaptou o hemiciclo ao formato rectangular de um relvado alemão. Devemos escandalizar-nos com isso, com os irrazoáveis excessos dessa "paixão totalitária" de que falava há dias Jean Daniel? A verdade é que o Mundial de futebol se tornou o maior espectáculo do mundo globalizado e unificado pela televisão, concentrando audiências que ultrapassam tudo o que, há apenas duas décadas, a imaginação conseguiria prever. Nenhum desporto de massas acompanhou - e amplificou - tão intensamente a globalização como o futebol, difundido e praticado hoje em todos os continentes, mesmo naqueles onde defrontou a barreira suposta- mente intransponível das tradições regionais. Nem sequer os Estados Unidos da América, apesar do papel secundário que o futebol ainda aí ocupa no imaginário colectivo e na indústria do espectáculo, escaparam a esse movimento geral. A linguagem futebolística universalizou-se devido à facilidade de apreensão dos seus códigos (ao contrário do futebol americano, do râguebi ou do basebol, muito concentrados regionalmente e de "decifração" mais árdua e menos aprazível). Essa universalização proporcionou fenómenos de catarse identitária entre as selecções e os países por elas representados, que constituem hoje os rituais de massa mais expressivos das paixões nacionais (ou até febrilmente nacionalistas) num planeta em grande parte uniformizado pelo império do liberalismo económico. Ou seja: o futebol tornou-se, por um lado, o maior denominador comum "espectacular" no relacionamento planetário e, por outro lado, a grande reserva simbólica das diferenças nacionais, com a vantagem de essas diferenças poderem ser dirimidas e sublimadas sem confrontos sangrentos nem rupturas irremediáveis. Mas há, evidentemente, países onde o futebol conta mais, muito mais, do que noutros. Já vimos, por exemplo, que existe uma desproporção abissal entre a potência futebolística dos Estados Unidos e a potência política, militar e económica americana. O mesmo sucede com a China ou a Índia - porventura a mais notória excepção à regra da globalização futebolística - e outras potências emergentes asiáticas. Mas há, em contrapartida, a Coreia do Sul, o Japão ou a Austrália, onde o fenómeno ganhou uma relevância absolutamente insólita e até febril (talvez mais marcante no caso coreano), como há também o Médio Oriente e a África, que apesar da fragilidade da maioria das suas selecções ganharam já um estatuto e uma capacidade de surpreender que eram impensáveis ainda há poucos anos. Finalmente, há aqueles para quem o futebol ocupa o lugar privilegiado da mitologia nacional - lugar de superação, sonho, redenção, mil vezes bigger than life, como acontece na América do Sul e, em particular, entre os favoritos deste Mundial: a Argentina e o eterno Brasil. Menos exacerbado será o fenómeno na Europa, onde o futebol nasceu e prosperou como indústria maior do espectáculo. Mas a relação entre o estado "anímico" de cada país e o estado em que se apresentam as respectivas selecções permite analogias curiosas, desde o claro declínio francês à errática "fúria" espanhola, passando pela mediania pouco galvanizadora da Inglaterra, da Alemanha ou, sobretudo, da Itália. Mais sólida parece a velha "laranja mecânica" holandesa, enquanto da ou- trora pujante Europa de Leste chegam ventos de decepção e desencanto. Mas se há um país europeu onde o contraste poderá revelar-se mais perturbador entre a carreira da selecção e o estado nacional das coisas, esse país é, decerto, o nosso. Apesar dos maus augúrios masoquistas e do anti-scolarismo "atmosférico" com que a selecção partiu para a Alemanha, a exibição frente ao Irão e a passagem aos oitavos-de-final quase que transfiguraram completamente o ambiente. É o Portugal ciclotímico no seu melhor. Se hoje vencermos o México ou, em todo o caso, ficarmos em primeiro lugar no nosso grupo e, por um golpe do destino, ultrapassarmos a barreira seguinte, quem nos pára? Mas se nem uma coisa ou outra conseguirmos, quem nos consola? A verdade é que, praticamente sem darmos por isso, estamos outra vez suspensos do que outros (neste caso a nossa selecção - ou a selecção de Scolari?) poderão fazer por nós.