Um mundo que afinal funciona bem - por João César das Neves
Chamamos aqui a atenção para mais este interessante artigo do Prof. João César das Neves no dn. E até calha bem, já que na próxima 5º feira, quem se lembraria disto!!! a Obra de Adam Smith aniversaria e, curiosamente, o Prof. Cavaco Silva toma posse como PR (desculpem-me as siglas, mas em certos casos elas não são só óbvias como desejáveis). Será só uma feliz coincidência (!?) ou também um bom prenúncio para a sociedade e economia portuguesa cuja Riqueza da Nação tem andado pelas ruas da amargura. Vale a pena ler aqui na íntegra o artigo do economista.
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- Um mundo que afinal funciona bem João César das Neves Professor universitário Na próxima quinta-feira fará 230 anos que foi publicado um livro: a 9 de Março de 1776, na editora W. Strahan & T. Cadell, foi dado à estampa o Ensaio sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, do filósofo escocês Adam Smith. Era o segundo volume das suas lições de Moral na Universidade de Glasgow (o primeiro, Tratado dos Sentimentos Morais, fora publicado em 1758). Mas a obra ficou famosa como fundadora de uma nova ciência, a economia. Muito se tem escrito e elaborado sobre as geniais intuições de Smith. Mas a ideia realmente revolucionária do tratado é muito simples e costuma ficar ignorada. Não se trata da liberdade, mercado, produção. Aquilo que Smith viu, e que muita gente desconhece, é um facto patente que, se o olharmos da forma certa, fica insólito. O que o escocês nos quer dizer é algo que todos já vimos, mas ninguém reparou. O mundo é composto por muita gente, muito diferente. Há pessoas boas e más, inteligentes e estúpidas, fortes e fracas. Cada uma pensa pela sua cabeça e quer coisas muito variadas. O que seria esperar era uma enorme confusão. Há muita confusão neste mundo, mas isso é normal. O que é realmente muito estranho é que não haja mais confusão. Aquilo que é de facto incompreensível não é quando o mundo funciona mal, mas quando funciona bem. Vale a pena citar o exemplo do autor: "Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles têm o seu próprio interesse" (Smith (1776) livro I. cap. 2). O meu jantar depende de uma enorme quantidade de pessoas, dos que cultivam os vegetais até aos que tiram da terra o metal dos talheres, modelam o copo ou o fogão, extraem o gás natural. Toda esta multidão precisa de trabalhar para que eu possa jantar. Mas a única pessoa no mundo interessada no meu jantar... sou eu. Por que razão se realiza tanto esforço? Porque é que o mundo funciona bem? Esta é a questão verdadeiramente interessante, aquela que fez nascer a ciência económica. Por que motivo o mundo não é uma confusão tão grande como seria de esperar? Esta é a pergunta que os economistas procuram responder há 230 anos. Desta constatação, e de muitas outras intuições, nasceu uma forma de abordagem às escolhas e interacções humanas que, sem substituir as outras análise, da psicologia à sociologia, suscita contributos muito interessantes. Esta ideia, no entanto, tem gerado muitos mal-entendidos. Um dos mais frequentes é deduzir que, como o interesse próprio serve o bem dos outros, então o egoísmo é eticamente bom. Mas pensar isso é esquecer que o livro pretende ser uma lição de moral, e confundir Adam Smith com a filosofia da publicidade ou da SIC Radical. Este paradoxo do meu jantar chega para combater a noção, hoje dominante, de que o altruísmo e o egoísmo são opostos e que cada pessoa tem de escolher entre ser boa para si ou para os outros, entre ser feliz ou virtuosa. Esta ideia é evidentemente falsa, como muitos sábios disseram ao longo dos séculos. O mundo não é uma luta entre átomos opostos que se devoram mutuamente, mas um local variado de confronto e cooperação, amizade e discussão. Muitas vezes, como o padeiro e o cervejeiro, as pessoas ajudam-se a si mesmas ajudando os outros. Mas a questão da ética coloca-se a outro nível. Smith notou que cada um, ao fazer o que acha que deve fazer, tem efeitos benéficos sobre os demais. Mas o problema ético coloca-se naquilo que se acha que se deve fazer, na atitude perante a vida, não na estrita ponderação das consequências. Um traficante de droga dá de comer a muitos pobres e o médico prejudica vastas regiões produtoras de tabaco. Até um rio, correndo para a foz, irriga todas as terras, sem que isso faça dele egoísta ou altruísta. O livro de Adam Smith mostrou que o mundo não é uma confusão, como se diz, e que até dos comportamentos maus saem boas consequências. Isso não os transforma em admiráveis. Apenas mostra que a arquitectura da realidade é muito mais bem concebida que a nossa personalidade. Já sabíamos que "de boas intenções anda o inferno cheio", sem deixarem de ser, ao mesmo tempo, boas e infernais. Com Smith aprendemos que até das más intenções anda o progresso feito, sem deixarem de ser más e progressivas. Daqui se pode deduzir aquilo que os últimos 230 anos mostram claramente: o progresso pode levar-nos ao inferno, se cuidarmos mais das interacções do que das intenções.
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