sexta-feira

A máquina de calcular corroida

Sorropiei esta reflexão, que é um retrato da civilização do último quarto de século, dum blogue que me chamou a atenção. Tasca da Cultura. A coisa parece soft, mas não é. Ou seja, convida à reflexão, encerra muita sociologia, muita ciência, muita tecnologia, muita modernidade, mas também muitos valores antigos, ligados à história, à antropologia, à resistência à mudança social que os novos tempos e os ventos da história impuseram às culturas mais tradicionais. Nesta narrativa, o leitor encontrará um mundo de assuntos, numa perspectiva de cross-fertilization, com uma podereosa imaginação sociológica. É um viveiro de ideias sem fim, um palco por onde desfila uma multiplicidade de actores, muitos deles têm a ver connosco, outros com os nossos pais e avós, e outros ainda - com o futuro, com o indizível, com o contingente, com o risco, com a inteligência artificial, com a astronomia, com o mundo digital que hoje digitalizou as sociedades - e os comportamentos e atitudes - , com a paixão científica, enfim, com o existencuialismo da Idade da Razão - (e o problema das escolhas e das decisões em tempo de guerra) e da loucura, direi eu - que culminou no Nazismo e noutros fascismos que ainda hoje nos perseguem. Até a teoria dos jogos de Anattol Rapopport e o dilema do prisioneiro aqui se equaciona. Kissinger, apesar de não ser o autor da teoria que originou o dilema, aparece no enredo. Chegou a dizer que o Poder é o maior dos afrodisíacos, e depois - com esse mesmo poder - fechou os olhos à chacina que a Indonésia perpetrou em Timor-Leste, entretanto independente, apesar de continuar pobre e desgovernado... Enfim, podemos notar aqui um enredo complexo, feito de muitos mundos: crashs bolsistas no sobe e desce da especulações, o carrocel das traições nos circuitos do poder, os fluxos do poder da Net, o crime invisível, a morte veloz como um raio e depois, bom depois, aparecem-nos as raízes: a terra, os valores, a Natureza, a água, os hábitos e os costumes antigos e, talvez, uma noção velha de amizade que hoje não se vê nem se sente. Creio que esta máquina de calcular corroida por uma cadela - ainda acaba em romance ou ensaio, ou ambas as coisas. Na dúvida, teremos de perscrutar os sons mais íntimos da dita cadela, talvez prenuncie o índice desse romance em gestação, cujo parto pode ser difícil. Mas retratar 25 anos de história do Mundo contemporâneo exige mais, muito mais do que uma cadela e uma máquina calculadora. Exige vontade, método, imaginação e capacidade para soldar pontas dispersas dum enredo que já está montado. Para cruzar o espaço desta nossa contemporaneidade. Fragmentada entre a modernidade e os velhos tempos. Entre o chip e a oliveira, o bit e a azeitona. Os tempos em que os homens ainda choravam, e não eram censurados por isso... A consecução de tudo isto é uma proeza. Diria que é uma grande e genial caçada. Uma caçada grossa que ainda nos pode fazer crer que existem leões e leopardos no Alentejo, elefantes e veados no Ribatejo, e que a malta - aqui de Lisboa - se precipita para lá em debandada, em busca de aventura e de sensações fortes. Esperemos, desta vez, que aqueles felinos não se chateiem a sério e nos acabem por caçar a nós. Se assim for, o romance termina mal. Não é um romance, é uma tragédia com muitos mortos e funerais para realizar..., repartidos entre o Alentejo e o Ribatejo.
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  • Lembro-me da primeira vez que vi uma imagem digital. Foi numa máquina de calcular com ecrã de LCD, alimentada a energia solar. Era uma Sharp, de bolso. Eu nessa altura era fanático por impressões tacteis. Estava sempre a tocar em plásticos, couros, paredes, cartão, vidro fosco, fosse o que fosse, tinha de lhe sentir a textura. A tecnologia era um manancial tremendo de texturas novas. Esta máquina digital tinha botões de borracha e eu entretia-me a carregar neles pois como era a energia solar tanto fazia estar ligada como não e o meu pai não se zangava.
  • A minha cadela, ainda cachorra nessa altura, veio a roer a máquina pois agradava-lhe bastante a textura dos botões também. A minha cadela morreu há algum tempo, com 17 anos, e ainda tenho a máquina com os buracos dos dentes de cachorro ponteagudos. A máquina de calcular do meu pai, a anterior, era uma hp científica com mostrador de led's vermelhos. Tinha tantos botões e cores que eu costumava usá-la para brincar às naves espaciais. Era a minha pistola laser.
  • Um dia veio Aplle///&///+ lá para casa. Fui investigar. Parece que tinha 2mhz de velocidade e 128kb de ram. Fiquei triste por não ter tido um Spectrum como os meus amigos. A textura dos Spectrums era mais agradável, com o seu plástico cinzento, mas aquela maçã colorida do logo da Apple imbutida no meu bastava-me.
  • Depois pude explorar uma sala com uma boa dezena de IBM Pc1. Esses tinham uma textura estranha, como uma parede de tinta de areia. O plástico picavava e era bastante feio. Estava feita a diferença entre os PC e os Apple. Ainda hoje os Apple's são obras de design e os pc's, quando se esforçam para o ser, só conseguem chegar a obras de tuning. E com o computador feio comecei a olhar mais para o monitor verde e pixelizado. Havia um jogo que consistia num scroll down contínuo do ecrã e numa nave espacial que "caía" numa espécie de gruta e tinha de se desviar de objectos sem tocar nas paredes. Joguei. Em poucos dias acabei o jogo. E a sensação de ter vencido uma máquina virtual foi tão real como a do cesto que marquei a poucos segundos do fim no torneio CocaCola All Stars na minha escola.
  • E depois desse IMB PC veio o Schneider Euro PC, um 286, um 486, um pentiumII, III e IV, monitores hércules, cga, ega, vga, super vga e lcd, sem contar com a minha adorada Playstation 2 (que agora ganha pó porque passo o tempo a escrever mas que com o Gran Turismo 4 vai voltar...) e os telemóveis sempre da última geração. Apanhei com a Internet na sua génese e lembro-me perfeitamente de ter acreditado num site que dizia que Courtney Love tinha assassinado o Kurt Cobain. Veio o fascínio pela inteligência artificial (que estudei numa cadeira do meu curso), a astronomia e a paixão pela ficção científica. Consumi tudo, chats, forums, pornografia, xadrez, música, cinema, jogos online, até chegar à Tasca da Cultura onde finalmente me materializei numa total simbiose entre o meu mundo «real» e o «virtual». A minha vida, as coisas melhores que ela tem, a minha ambição e os meus sonhos foram todos forjados a 0 e 1's.
  • Quando penso na Internet tenho-lhe a mesma opinião que tenho da bomba nuclear. Estavamos bem melhor sem ela, era inevitável que aparecesse, e servirá cada vez mais interesses menos claros. Prevejo tempos negros. Talvez seja pessimista dirão. A energia nuclear também era vista assim, até anuncios futuristas dos 50's mostram uma torradeira nuclear e uma família feliz. Depois fizeram-se abrigos nucleares no quintal, com anuncios tv como se vendessem casas luxuosas. Agora põe-nos filtros de spam, pop up killers, ad ware watch e antivirus e mesmo assim somos expostos a uma radiação do que há de pior na humanidade, a começar pela mentira que circula por e-mails como se fosse um dado adquirido, a passar por termos a vida toda numa base de dados algures e a acabar com videos de decapitações de refens disponíveis online. Kissinger dirá que a bomba nuclear foi necessária ao equilibro de duas superpotências, a solução do dilema do prisioneiro da teoria dos jogos. A Internet também satisfaz uma óbvia necessidade no homem: a comunicação. Mas há algo de hipnótico no efeito que causa em toda a sociedade. Será constante, pensou-se o mesmo quando surgiu a televisão.
  • No entanto estou profundamente convicto que o pessimismo face ao futuro não é constante por defeito de raciocínio. É constante porque os motivos para o pessimismo também o são. Lebedev, uma personagem do Idiota de Dostoiévski, é apaixonado pela ideia do Apocallipse, fazendo todo o tipo de previsões e numerologia mística. Diz ele que «a estrela de absinto» anunciará o fim do mundo. Diz que essa estrela não está no céu, está naTterra e são os caminhos de ferro que confluem todos para o centro da Europa. Diz ele que as fronteiras entre os países vão-se esbater, os povos misturar-se e entrar em conflito (alguém falou no fundamentalismo islâmico?), as guerras serão muito mais mortíferas porque se pode transportar muito mais homens e armas. Estávamos em meados do século XIX, antes do conflito Franco-Prussiano e logo no início do XX ocorreu a primeira guerra mundial em que os caminhos de ferro foram essenciais à mobilização dos meios para a chacina de 9 milhões de pessoas. Recomendo o seu estudo pois nove milhões de mortos por, literalmente, nada, merece um estudo cuidado.
  • Os intelectuais pareciam fascinados pela espiral do conflito, pela grandeza e honra dos combates. As tropas eram enviadas para morrer por comboio como depois por comboio eram levados os judeus para os campos da morte nazis, algumas décadas depois, de novo numa espiral de histeria colectiva. E mesmo intelectuais caiem facilmente na ratoeira, largam tudo para ir combater na Guerra Civil de Espanha porque as suas vidas são, aparentemente, vazias (Leio o L'age de raison do Sartre agora). O bonito chavão da sociedade de Informação esconde uma sociedade da pornografia e do terrorismo. O único negócio rentável nos primeiros 15 anos da internet foi a pornografia que se especializou na satisfação imediata de todo o tipo fantasias extremas e doentias, como a pedofilia. A crença no eldorado das .com cegou experientes economistas e gestores e o crash bolsista foi o maior de sempre! É a nova forma de absolutismo, obriga-nos a uma constante sensação de insatisfação, uma sede de largura de banda e megas de memória, criando-nos necessidades e vícios que não existiam antes, mas ao contrário de outros produtos, os avanços tecnológicos nesta area são vistos como saltos civizacionais. Nada neste raciocínio é novo, admito. A Net é simplemsente nova «estrela de absinto».
  • Tv, um aborígene com 90 e poucos anos, sentado no deserto terroso vermelho da austrália, perto de umas rochas sagradas de um imponente desfiladeiro. Os aborígenes são o povo e a cultura mais velha do mundo. Não tinham mudado quase nada em 60 mil anos até chegarmos. Este velho aborígene fala da sua infância, antes do homem branco. Disse que quando chovia naquelas montanhas a água escorria e caía em cascata e era a alegria da aldeia. Iam para lá e mergulhavam na água fresca que fazia um ruído mágico ao escorrer do desfiladeiro. O velho chorou. Disse, de dentro das roupas ocidentais que lhe assentavam mal, que agora não havia ninguém ali quando chovia para brincar na água e que a vida era muito pior para os jovens. Só preocupações. Também me apeteceu chorar. Se não sabia o que era o cancro e o alcoolismo agora sabe. Se não sabia o que é a pobreza agora sabe. Se não sabia a importância de andar vestido mesmo quando está um calor tórrido agora sabe. Se não sabia que se podia domesticar o culto místico dos seus vários deuses num só e dentro de igrejas agora sabe. Se não sabia como é bom poder fazer 300 km de carro num dia agora sabe. Se não tinha vontade de comprar coisas agora tem. Se não tinha medo de morrer agora tem porque o medo e a vergonha da morte como derrota da ciência são um produto dos nossos dias.
  • Eu só queria voltar aos tempos em que um computador era um objecto mágico com textura, como se fosse uma bola de borracha ou uma concha do mar tirada das areias do Algarve. Até a minha cachorra deu um uso mais apropriado à máquina de calcular. Eu só descobri agora que a máquina sabe mesmo bem e a textura é muito agradável de roer. Cadelita esperta hã?
# posted by O Bom Selvagem : 3:44 PM in - http://tascadacultura.blogspot.com