Da indecibilidade à memória curta e longa das coisas e das pessoas
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O Outono, por suceder ao Verão e antecipar o Inverno impele-nos para alinhar balanços no vagão da memória, mas a que nem sempre a linguagem e a reflexão disponíveis conseguem dar vazão ou definição precisa.
Alguma queda de temperatura também nos modela os pensamentos e a forma de reagir aos factos do mundo que nos rodeia, o qual nos desafia constantemente para o organizarmos, para o compreendermos e, por fim, para o explicarmos ou, no limite, o modificar. Ora, é sob este ambiente de outono astral, a que se associa a queda das folhas das árvores, que percepcionamos a relação do sentir com o pensar, ou seja, invocamos o existencialismo como corrente explicativa da evolução das nossas vidas, para o melhor e para o pior.
É nessa fenomenologia existencialista, que fez carreira com J.P.-Sartre, A. Malrau, Maurice Merleau-Ponty, ou, mais remotamente com A. Schopenhauer, Soren Kierkgaard, F. Nietzsche, E. Husserl e M. Heideger - todos - com diferenças de pensamento procuraram enquadrar o existencialismo no humanismo e, com nuances, defendiam que o indivíduo é o único responsável por conferir significado à sua vida e em vivê-la de modo sincero e apaixonado. Um modo de vida que não descarta, naturalmente, a ansiedade, o absurdo, a alienação e, no limite, o desespero humano de que nos falava Soren Kierkgaard e para cujo mal não há cura. Ainda assim, considerava que a morte era um mal menor comparado com o desespero...
O Outono é assim um tempo implacável, pois arrasta-nos para o que queremos e não queremos, partilhando as memórias boas com a más e atravessa-nos com o passado (recente e remoto) como se fosse uma espada a recortar o presente e, de certo modo, a modelar o futuro. Ora, é nesse movimento interior que nos revelamos, que trazemos à superfície o nosso EU - e o pomos em contacto com a morte e o desespero ou a sua perspectiva.
Por outro lado, este dilúvio outonal, como se fosse uma Aparição (por alusão à obra de Vergílio Ferreira) abre-nos o passado através da memória, e dela parte um cruzamento que pode ser mais ou menos fecundo consoante o conhecimento e a capacidade de correlacionar factos, situações e circunstâncias no caleidoscópio da vida de cada um de nós. Entre a filosofia, a reflexão, o common sense, a criatividade poética e a aguçada memória (romanesca ou não!!) pode sintetizar-se 80 ou 90% de nossas vidas. É nesse carrefour que muitos dos nossos pensamentos, percepções e emoções deambulam no vagão da memória em busca de ordenamento racional que empreste sentido e significado à vida.
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No fundo, vivemos nessa busca permanente para encontrar a Palavra criadora de mundos capaz de dizer a verdade acerca de nós e daqueles que nos são importantes e capazes de resumir uma vida, ou parte dela mas como se fosse uma vida inteira pela intensidade conseguida.
Por último, e esta também é uma marca deste Outono astral que sinaliza a transição das estações e pauta toda a condição humana, decorre dum confronto inescapável. Com ele, ou através dele, somos transportados para o desafiante confronto entre dois tempos: o tempo diário, marcado pela espuma dos dias do nosso quotidiano; e o tempo longo e estrutural da memória que abarca e alcance outros horizontes.
Frequentemente, a nossa vida é profundamente marcada por essa relação tensa entre o tempo curto e mensurável, do aqui e agora, e o tempo longo que empresta um sentido humano à vida, mesmo que façamos promessas abstrusas a meio da ponte - os dados já foram lançados, e esses foram gravados a lazer na nossa memória que é, segundo a segundo, desafiado com o cheiro a chuva batida na terra seca numa qualquer mata da nossa exisstência.
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