sábado

Europa tem de pôr as políticas onde estão os valores - por António Vitorino -

Nota prévia: Vale  sempre a pena ler e reflectir nas palavras avisadas de António Vitorino acerca desta velha Europa que carece de orientação e uma visão mais humanista para os países do velho continente.

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Continua a ser uma das vozes mais influentes no debate europeu que se trava em Portugal e em Bruxelas. Não esconde os revezes e as dificuldades. No dia em que a Europa está em Roma para festejar os 60 anos do tratado que a fundou, o antigo comissário europeu, que presidiu ao think-tank Notre Europe, sublinha a importância de reafirmar os valores europeus e refazer a confiança perdida nas sucessivas crises.
A Europa vive há quase dez anos uma crise que é a maior da sua história. Pela primeira vez, está em cima da mesa o cenário do seu fim. Acredita que, em Roma, possa haver um rebate de consciências, ou já estamos muito para além disso?
O que espero de Roma é uma declaração sobre os valores da União Europeia, porque é particularmente importante que sejam reafirmados. E essa reafirmação é tanto mais importante num momento em que, no plano transatlântico, os Estados Unidos se afastam desses valores, mas também quando há uma responsabilidade acrescida para que os europeus ponham as suas políticas onde estão os valores. Mas não espero decisões surpreendentes, porque é preciso perceber que os temas de agenda condicionam a própria capacidade de decisão. Seria ingénuo ignorar as eleições francesas e alemãs ou o "Brexit". O importante é que saia uma declaração de vontade comum de revisitar as políticas em função dos valores.
Fugindo um pouco à sua responsabilidade.Tem acompanhado as negociações em torno da declaração. Não tem sido fácil encontrar um terreno comumentre os 27. Era impossível ir mais longe?
Não é a primeira vez em que os europeus estão profundamente divididos. O que é, talvez, uma novidade preocupante é que não há ainda um centro político que permita estabilizar a superação dessas divisões. A Comissão deu o seu contributo com o Livro Branco…
Mas colocando os Estados-membros perante as suas próprias responsabilidades. E isso não é de somenos importância hoje…
Acredita que os governos dos grandes países vão olhar para estes cenários, aceitando que têm de se posicionar perante eles?
Se a resposta for a rejeição dos cenários de retrocesso e a vontade de explorar os cenários que permitem aprofundar a integração, creio que já é um passo em frente. Mas isso passa por estabelecer prioridade, e é isso que, em Roma, provavelmente ainda não se vai fazer.
Depois das eleições alemãs, acha possível recriar esse centro político e essa capacidade de definir prioridades que sejam unificadoras?
Da possibilidade não sei, mas da necessidade sei. E, por paradoxal que pareça, o "Brexit" é um incentivo. Temos de compreender que há uma necessidade de redefinir o sentido comum do projecto de integração europeia. Já não pode ser apenas a paz ou a reconciliação franco-alemã. Tem de ser sobre o papel que a Europa tem de desempenhar no mundo. Não num sentido egoísta, mas sobre a importância dos valores que personifica e que ficam cada vez mais evidentes. Estamos preparados para viver num mundo onde o multilateralismo, o respeito pelo Estado de direito e pelos direitos fundamentais, a tolerância religiosa não figurem como eixos centrais da ordem internacional? Acho que a resposta que todos os europeus dão é que não querem esse mundo. E, portanto, têm de assumir as suas responsabilidades nas políticas internas e na política internacional.
Crê que o cenário da fragmentação, mesmo que lenta, já está afastado?
O "Brexit" quebrou um tabu que era a ideia de que a Europa estava sempre a acrescentar e não a diminuir. Nesse sentido, a perspectiva da desintegração, mesmo que progressiva, não pode ser totalmente afastada. Mas também é importante sublinhar que a reacção das opiniões públicas dos outros países foi o aumento do apoio ao projecto europeu. Em nenhum país europeu houve um alinhamento com o "Brexit" – o que não significa que não haja políticos que estejam alinhados com ele, como Geert Wilders, por exemplo, ou a senhora Le Pen. Mas a verdade é que dos 35% de apoio ao projecto europeu que se verificavam há dois anos, passámos para níveis da ordem dos 50% a 55%, distantes ainda dos 65% a 70% de antes da crise, mas, apesar de tudo, invertemos a tendência. Se alguma leitura positiva pode ser feita, é que ainda há um capital de esperança entre os europeus sobre a capacidade da Europa de assumir um protagonismo no mundo, em vez de fechar fronteiras…
Apesar do que temos visto sobre os refugiados?
A questão da imigração é um problema sério que vai persistir, porque, mesmo que não haja uma nova vaga de refugiados, a pressão migratória vai manter-se e é preciso ter a consciência de que nenhum país, isoladamente, consegue fazer face a esta realidade, como, aliás, a Alemanha demonstrou.


Olhando para as múltiplas crises que se encadeiam – "Brexit", Trump, Rússia, refugiados, terrorismo, euro etc. –, é possível antecipar o que pode vir a ser a Europa depois desta crise?
Sim. Acho que há três blocos fundamentais. O primeiro é o papel da Europa no mundo, que levanta questões de segurança e defesa, que têm de ser cada vez mais assumidas como uma responsabilidade europeia. O segundo bloco é reformar a união económica e monetária (UEM). Estamos a viver em tempos emprestados pelo Banco Central Europeu, mas os fundamentos da UEM permanecem frágeis. O grande desafio da sustentabilidade do euro, mais do que condicionar os mercados financeiros, é permitir retomar a senda da convergência económica dentro da zona euro e, por outro lado, responder àquilo que é a maior chaga social que enfrentamos hoje: o desemprego jovem. E, depois, há um terceiro bloco que é a necessidade de acrescentar uma dimensão social às políticas europeias. Não se pode resumir tudo a casas decimais do défice e da dívida. Tem de haver uma dimensão em que a Europa seja capaz de proteger, sem ser proteccionista. Proteger os cidadãos sem se transformar numa potência proteccionista. Estes três blocos são aqueles que vejo como fundamentais
Essa reforma da UEM, fundamental para os países mais afectados pela crise e pela falta de crescimento, é compatível com o discurso alemão: que já há regras e que se trata de cumpri-las, afastando qualquer futura partilha de riscos?
Na reforma da UEM, o que está em causa é a partilha do risco e a partilha da soberania. Esse equilíbrio não está alcançado e, por isso, a união monetária está incompleta. Também é justo reconhecer que, desde que começou a crise financeira, o país que mais evoluiu nas suas posições sobre a UEM foi a Alemanha..
Um bocadinho a custo…
Muitas vezes tardiamente e pressionada pelos acontecimentos. Mas foi. Não perco a esperança de que a Alemanha venha a compreender que completar a UEM não é apenas imprescindível para a sustentabilidade do euro, mas também para o seu próprio interesse nacional, que está indissoluvelmente ligado ao euro.
É legítimo dizer que há a Alemanha de Merkel e a Alemanha de Schäuble?
Basta pensar no episódio do "Grexit", no início da crise, para perceber que nessa altura não havia coincidência de opiniões entre a chanceler e o ministro das Finanças. E a chanceler prevaleceu.
E agora?
Creio que o debate alemão é condicionado pela recusa de que a UEM se transforme numa “união de transferências”. Ora, a questão é que esse modelo não é o único possível para a UEM. Pode haver um modelo win-win sem que isso passe forçosamente por um modelo de transferências permanentes.
Como?
Através da transformação do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) num fundo monetário europeu que garanta a estabilidade da UEM e que faça frente a choques assimétricos. Também através da criação de mecanismos de solidariedade financeira, em que há quem contribua e há quem receba em função dos ciclos económicos, o que significa que não há contribuintes permanentes nem recebedores permanentes. Finalmente, através de um fundo de investimentos estratégicos, ampliando o que é hoje o “fundo Juncker”. Se recordarmos o que foram os fundos estruturais na época de Jacques Delors, há soluções que beneficiam os recebedores, mas também beneficiam os agentes económicos dos países contribuintes. Basta pensar na Auto-Europa, que foi muito benéfica para Portugal, mas também para uma empresa de referência fundamental na Alemanha.


Tem chamado a atenção para o facto de não ser possível eternizar uma Europa de vencedores e de vencidos. Quando o presidente do Eurogrupo diz que os países do Sul gastam tudo em “copos e mulheres”, verificamos que esta divisão não é só económica.
A crise deixou estigmas profundos que levarão tempo a ultrapassar. A frase que citou é de alguém que não está muito sóbrio, de certeza. Reconstruir a confiança entre os Estados-membros é a primeira prioridade. E essa confiança foi seriamente abalada. Por isso, creio que a primeira das prioridades é restabelecer um sólido entendimento entre a França e a Alemanha. Tenho a esperança fundada de que os resultados das eleições nos dois países permitirão criar, na França e na Alemanha, um novo quadro político de relançamento do entendimento franco-alemão.
Está a dizer que os novos protagonistas são Macron e Schulz?
Não estou a querer ir tão longe. O que posso dizer claramente é que a senhora Le Pen não ganhará as eleições francesas, mas também estou a dar-lhe a entender que, na minha opinião, haverá uma nova relação de forças na Alemanha, mesmo que não se traduza numa mudança de chanceler, que também é positiva.
Regressou a ideia das várias velocidades da integração, que foi, em tempos, uma ideia francesa e alemã. Volta a ser, embora a Declaração de Roma tenha dissolvido um pouco os termos em que deve ser feita. É um risco ou é uma necessidade?
Em primeiro lugar, é uma realidade. Acho que devemos colocar as coisas em perspectiva. Elas já existem, com o euro ou com Schengen. Estão previstas nos tratados, com as “cooperações reforçadas” e a “cooperação estruturada” na defesa. Não estamos a falar de inventar a roda. Em segundo lugar, as boas ideias precisam normalmente de ser testadas nos detalhes, porque é aí que estão os problemas. Acho que há princípios que têm de ser respeitados. Primeiro, o princípio da igualdade entre os Estados, neste caso, o princípio da porta aberta. A participação é voluntária e quem quer participa. Em segundo lugar, essas velocidades desenvolvem-se dentro do quadro institucional da União Europeia. É fundamental que o ritmo de evolução dessas “cooperações reforçadas” seja supervisionado pelas instituições europeias, de forma a que o grupo da frente não adquira uma velocidade e uma autonomia que tornem praticamente impossível a recuperação.
Até agora, o Reino Unido e a relação com os Estados Unidos criavam um equilíbrio de poder na União Europeia que não permitia que uma potência continental se afirmasse acima de todos os outros. Esta amputação “atlântica” vai ter impacte na Europa que aí vem?Que terá impacto, seguramente. Do ponto de vista da relação transatlântica, ela vai sofrer bastante. Mas isso não é razão para não continuarmos a entender que os valores históricos comuns à Europa e aos Estados Unidos não devem ser preservados. Do ponto de vista da relação de forças na Europa, a saída do Reino Unido é uma derrota política muito séria e que terá efeitos na Europa, porque vai colocar a França e a Alemanha frente a frente sozinhas, sem aquilo que tem sido um vector euro-atlântico moderador. [Esta situação nova] tem riscos, porque cria uma Europa muito mais centrada no continente, que perde a dimensão atlântica. Para Portugal é negativo. Mas também estou convencido que a vocação europeia da Alemanha não será de querer afirmar-se como potência hegemónica isolada, mas de procurar encontrar novos equilíbrios. E, para isso, todos os países-membros são importantes e têm a obrigação de contribuir e participar.
É necessária também uma mudança em França, para reconstruir esse eixo fundamental?
Que continua a ser fundamental. Apesar de tudo, há razões para sermos optimistas. Em França, a principal alternativa a uma impensável deriva autoritária que representaria a vitória da senhora Le Pen, é uma candidatura muito pró-europeia e muito comprometida com o projecto europeu e com a necessidade de haver um sólido entendimento entre a França e a Alemanha.
A defesa está hoje entre as prioridades dos dois países. Estamos numa nova situação em que o efeito Trump e o efeito Putin levaram a Alemanha a uma mudança na forma como vê o seu próprio poder. No novo contexto europeu sem o Reino Unido, esta mudança não criará também alguns anticorpos?
A Alemanha tem sido, sobretudo, uma potência geoeconómica. Está, agora, a fazer a sua transição para uma potência geopolítica. E isso, na minha opinião, é positivo. Mas não é isento de dificuldades, dentro da Alemanha e no conjunto dos países europeus. Os responsáveis políticos têm de iniciar um diálogo muito sério com os cidadãos sobre o custo da segurança e da defesa. As pessoas têm todo o direito de pedir segurança, contra o terrorismo, contra as ameaças externas, contra a instabilidade nas regiões limítrofes, com as ondas de refugiados que chegam à Europa ou com a ameaça expansionista da Rússia na Ucrânia. O que é preciso é que os responsáveis políticos tenham a coragem de explicar que isso custa dinheiro. E também que podemos contar menos com a relação transatlântica para nos proteger e que cada vez mais teremos de contar com as nossas próprias forças. Isso exige compromissos.


Ouvi-o dizer várias vezes que a crise europeia era também a crise das suas democracias. Parece que tinha razão. Ficámos felizes porque Wilders não ganhou as eleições, mas obrigou Mark Rutte a colar-se à sua linguagem, nomeadamente em matéria de imigração.
Isso aconteceu no ponto da imigração, mas não no ponto da Europa. O que é inaceitável é dizer que, porque Rutte se colou a Wilders no domínio da imigração, a vitória dele não pode ser considerada uma vitória pró-europeia. Na questão europeia foi uma ruptura frontal. Não é justo querer meter tudo no mesmo saco.
Mas as forças nacionalistas ganharam muito peso no debate europeu.
Há três razões fundamentais. Em primeiro lugar, o impacte da globalização que se traduziu na pressão sobre as classes médias e que gera insegurança e incerteza. Em segundo lugar, a enormíssima revolução tecnológica que estamos a viver e que altera muito as formas consagradas de vida. E, em terceiro lugar, porque a Europa é vista como um instrumento da globalização desregulada e não, como diz o meu amigo Pascal Lamy, como uma plataforma de civilização da globalização. O que é preciso é que a Europa leve a sério a sua função de civilizar a globalização. Não é fechar-se, não é ceder ao populismo, odiar o estrangeiro, rejeitar o imigrante. É ser capaz de ter um protagonismo que regula, que civiliza, a globalização. E isso tem de ter uma implicação nas políticas sociais, para dar conforto aos sectores sociais que se consideram, uns com razão, outros sem ela, os perdedores da globalização.
Não é fácil fazer isso.
Passa pelas democracias nacionais e pelo diálogo em torno do contrato social de cada país. E, a partir daí, ver o que se pode fazer a nível europeu.
Entretanto, a nova Administração americana tem um forte pendor proteccionista. Como é que a Europa consegue contrariar esta vaga?
A resposta não é fechar-se, é manter-se fiel aos valores da abertura. Em segundo lugar, é confiar na força das cadeias de produção multinacionais que são hoje dominantes na economia global. A incorporação americana nos IPad é de 55% e a da China é apenas de 15. Uma taxa de 45% seria mais danosa para os americanos do que para a China. Em terceiro lugar, temos de estar preparados para adoptar medidas retaliatórias, se elas visarem os europeus.
Não é só a Europa que pode ser visada. A China, o Japão… Comporta também uma dimensão geopolítica.
Claro. A Europa terá responsabilidades acrescidas em relação à China, Japão e outras economias emergentes, que manifestamente não estarão interessados numa onda proteccionista. Os Estados Unidos estão mais isolados do que supõem. Quando Xi Jinping vai a Davos e faz um discurso a favor do livre comércio, isto obviamente não pode ser ignorado pelos europeus.
Na Alemanha, o combate eleitoral é entre dois partidos europeístas ou três, incluindo os Verdes…
Estamos a falar de 70% dos eleitores.
Mas não será imprudente começarmos já a anunciar o fim destes movimentos populistas?
O populismo alimenta-se e também alimenta a polarização das sociedades. E vivemos hoje em sociedades muito mais polarizadas. Cito sempre [o anterior primeiro-ministro francês] Manuel Valls: “Os populistas colocam as verdadeiras questões, mas a todas elas dão a resposta errada. É preciso dar as respostas certas às questões certas."

Em França, os dois principais partidos da V República estão desfeitos. E é um outsider sem partido que as pode ganhar.
O que hoje marca as democracias, como se viu nos EUA e agora na França, é uma grande vontade de mudança. Mudança é hoje a palavra-chave. Mais do que com a imigração ou o proteccionismo, Trump ganhou porque representava a mudança. Em França, o paradoxo é que a mudança parte do centro. A França nunca construiu um centro político. Mas, pela primeira vez, há um centro e isso vai levar a uma recomposição das forças partidárias. Já viu como há vários responsáveis, quer do PS, quer dos Republicanos, que já declararam o seu apoio a Macron?
Como é que Portugal se pode ver neste contexto?
Devemos manter a linha consistente que definimos desde a adesão: estarmos presentes nos núcleos centrais de aprofundamento da integração. Não o devemos fazer de ânimo leve, no sentido em que é preciso avaliar com rigor os custos e os benefícios e isso exige um debate que tem de ser feito na sociedade portuguesa. De alguma forma, esse debate surgiu enviesado por causa da crise do euro. Cada vez mais é preciso fazer um debate razoável sobre o que é necessário para criar as condições de base que garantam a nossa permanência do euro, que eu defendo absolutamente. Esse debate está prejudicado pelo que foi a receita da austeridade que, digamos, encobriu o debate de fundo, que exigiria a construção de um consenso alargado. O problema é que hoje as condições políticas não o favorecem.
A Europa seria diferente com uma dupla Schulz-Macron?
Nunca faço repousar as grandes transformações em pessoas. As pessoas são importantes, fazem a diferença, mas a política que a Alemanha seguiu em relação à UEM teve um apoio muito alargado entre os alemães. Também não posso ignorar que, enquanto presidente do PE, Martin Schulz tomou posições diferentes e é um dos subscritores do relatório dos cinco presidentes que está na gaveta: o mínimo que se exige é que o possível chanceler Schulz o tire da gaveta. De resto, não faço antecipações sobre as eleições nos dois países. Também dissemos que a eleição de Hollande ia fazer a diferença e não fez.
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