Um activo tóxico - por José Pacheco Pereira -
Nota prévia: Tudo aquilo que o historiador José Pacheco Pereira diz de Sócrates (o sublinhado é nosso) poderia aplicar-se a Ricardo Salgado (BES), o ex-DDT, pois quando o era todos, incluindo agentes políticos, se lhes vergavam, e os mais recalcitrantes eram depois comprados com dinheiro, cargos ou outras benesses que os neutralizavam na vida pública. Portanto, nada de novo na análise do historiador. A novidade é a narrativa agora concentrar-se num ex-PM, o qual foi detido e preso pela 1ª vez em Portugal.
- Aliás, seria bom revisitar a história para saber o que os portugueses disseram do Marquês de Pombal quando este deixou de ser poderoso e influente em Portugal. Somos assim. Esta reverência perante os grandes e influentes e desprezo pelos fracos, é algo que atingiu o ADN da estrutura da personalidade colectiva do povo português. Porventura, resulta da génese da fundação da nacionalidade com o filho a bater na mãe...
- O que porventura é novo nesta relação, que confronta a Justiça com o ex-PM, decorre do facto deste apresentar sinais de vida que estão muito para lá daquilo que era norma nos agentes políticos em Portugal. Ninguém gasta 15/20 mil euros por mês em educação, habitação e alimentação; quem é PM durante 6 anos acumula um valor bruto de cerca de 400.000€, um valor que não chega(ria) para suportar aquele estilo de vida durante um ano.
- Por outro lado, e apesar dos indícios de corrupção e de outros crimes de natureza económica e financeira de que o ex-PM é acusado, e que o levou - justa ou injustamente à cadeia - não se compreende por que razão a justiça não deduz acusação, como devia, salvo se considerar que, afinal, a sua acusação é fraca e tenderá a ir morrer à praia; de contrário, por que razão não se arquiva o processo?! Esta incerteza é também dolosa, malévola e visa agravar os danos na vida pessoal de Sócrates.
- Esta conduta da suposta justiça não deixa de ser violadora dos direitos básicos dos arguídos num estado de direito, cujos princípios assentam na presunção da inocência e nesta até trânsito em julgado. Mas Sócrates há muito que foi julgado pelos media, além de ter sido detido e preso durante quase um ano, sem culpa formada. O que também é deveras estranho e inexplicável perante o sistema judicial que, mais tarde ou mais cedo, até por uma questão de honra do próprio, terminará com um pedido de indemnização ao Estado português por aquilo que poderá configurar um abuso de poder e ausência de prova.
- Também não se compreende por que razão é sempre aquele juiz de instrução, o super-juiz Alexandrino e o Procurador Teixeira - a conduzirem os processos mais "políticos" em Portugal. Haverá alguma concertação entre eles e a PGR - e alguns media que favoreça essa condução capciosa dos processos judiciais mais delicados?! Tratar-se-á de algum acertos de contas?!
- Quando tudo isto terminar, ou antes, convinha que também aqueles que foram os intervenientes judiciais deste processo fossem objecto de escrutínio judicial pelos seus pares, a fim de se perceber até que ponto é que algumas das reformas da justiça - que tiraram algumas regalias e tempos de férias à magistratura - não gerou ódios suficientes que depois desencadearam uma perseguição ad hominem.
- De facto, com estes operadores judiciais os portugueses nenhuma garantia têm da existência de imparcialidade, isenção na recolha das provas e de instrução do processo que levará à acusação ou arquivamento do processo Operação Marquês. E o que dizer do papel da PGR, a srª Joana Marques Vidal - que não pensa, não fala, não emite qualquer opinião acerca da violação de prazos, etc. Ou será que ela só pensa, só fala e só emite opinião quando se trata de ilibar Paulo Portas, referindo-se ao caso dos submarinos, de longe mais gravoso para o erário público, como um caso de estudo, de valor meramente académico, pelo que importa arquivar por ausência de prova. Ou seja, a PGR revelou dois pesos e das medidas na tentativa do apuramento da verdade, e em matéria de contenção e punição às sistemáticas fugas e violações ao segredo de justiça - nada foi feito e apurado e, apesar disso, a srª Joana ainda se mantém em funções.
- Independentemente de a acusação vir a ser frouxa ou de o processo ser arquivado, é um fardo do qual Sócrates jamais se conseguirá livrar, e isso irá prender-lhe os movimentos para todo o sempre na sua vida pública (futura) em Portugal. E isso decorre do facto de ele viver, como alega, às expensas de um amigo, pela narrativa insustentável que todos conhecemos. Esse facto, de per se, é bastante para não o recomendar para um cargo público em Portugal. Mas pode ser que também aqui haja uma excepção à regra, e Sócrates faça doutrina na área e ainda venha a desempenhar altas funções públicas em Portugal.
- Presumo que para a semana, até por uma questão de equidade analítica, o historiador JPP faça uma reflexão acerca do que poderia resultar se o processo Tecnoforma fosse reaberto e aprofundado. Como se comportaria a justiça nesse caso?!
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Um activo tóxico
Há um aspecto do comportamento dos portugueses que muito me desagrada. Eu sei que dizer os portugueses é generalizar muito, mas neste caso é um comportamento muito mais comum do que devia ser. Trata-se da tendência para ser subserviente face ao poder, ter muito respeitinho face aos poderosos, nalguns casos ter medo, e, depois de estes caírem do seu pedestal, ir lá a correr atirar a enésima pedra. Foi o que aconteceu com a ascensão e queda de José Sócrates, de todo-poderoso primeiro-ministro, em cujo séquito muitos andaram e bajularam o príncipe e a corte, a quem permitiram muito mais do que deviam, a quem admiraram em silêncio e bateram ruidosas palmas em público.
Foi só no PS? Longe disso, foi no PSD e no CDS, foi nos meios empresariais, no jornalismo, nos “homens de confiança” de todos os partidos. Até à sua queda em 2011, o homem era o “melhor primeiro-ministro de Portugal”, a personagem determinada e corajosa que tinha trazido o PS ao “centro” e “esvaziara o PSD”, o homem das “medidas necessárias” para pôr na ordem o défice e as contas públicas deixadas num descalabro pela experiência Santana Lopes, e por aí adiante. Não lhe faltaram elogios “transversais”, como agora se diz.
Quando Sócrates passou para a mó de baixo e foi preso, os aduladores transformaram-se em acusadores e os mesmos, ou quase os mesmos, vão lá à trincheira funda onde ele está, e levam a pedra para o lapidar. Detesto isto e, depois de ter sido um dos mais duros críticos de Sócrates (quando, convém lembrar, os dirigentes do PSD de Passos e Relvas, o protegiam), fiquei bastante em silêncio quando bater-lhe se tornou “politicamente correcto”. Não gosto de bater em quem está vencido e perseguido. E Sócrates estava e está vencido (mesmo que ele e os seus fãs não acreditem) e era então perseguido. Penso que ele tem legítimas razões de queixa contra o modo como a Justiça o tratou, abusando dos seus poderes e actuando ad hominem, bem como contra a campanha na comunicação baseada em fugas de informação orientadas, misturando informação relevante com trivialidades interpretadas de modo persecutório.
Mas, atenção, quando José Sócrates liberto passa de novo ao “ataque” dando entrevistas de grande destaque, em que não só fala de política como dá continuidade e um alcance cada vez mais vasto à interpretação política do seu processo, assim como pretende responder a alguns factos de que é acusado, então deixa de ser o homem da mó de baixo, para se tornar um parceiro activo da vida política portuguesa, e, do meu ponto de vista, de forma tóxica e inaceitável na sua jactância e no insulto que faz nas suas “explicações” à inteligência de qualquer português. Isso significa que já não me sinto limitado pela minha reserva de ir bater num homem que estava coarctado de liberdade e com quem qualquer debate e crítica seria desigual e punitivo. Agora estamos de novo perante o “animal político” e esse “animal” quer morder-nos, pelo que penso ser necessário caçá-lo, sejam quais forem as conclusões do processo judicial —porque, do que ele diz, ele não está inocente.
Sócrates interpretou sempre o seu processo como sendo uma perseguição política desde o primeiro minuto. Teve uma ajuda preciosa na sua vitimização em alguns actos judiciais que objectivamente o discriminaram, e no efeito das fugas de informação que são orientadas contra ele e que não tiveram qualquer resposta capaz por parte do Ministério Público, o que gerou a suspeita de cumplicidade. A percepção de que estava a ser julgado na praça pública e de que isso se fazia para esconder as fragilidades da acusação ainda mais o vitimizaram e ajudaram a passar uma tese de perseguição política que tem hoje mais adeptos do que tinha no início.
Tudo isto é verdade, mas não pode ocultar que há um enorme conjunto de factos que não são controversos, e que ele mesmo admite que são verdadeiros, que o acusam do ponto de vista do comportamento cívico que é exigível para quem pretende ter uma vida política sem limitações, que levantam legítimas suspeitas de práticas inaceitáveis num antigo primeiro-ministro, de infracções fiscais e, se se vier a provar em tribunal, de crimes. E as “respostas” que ele dá não só não convencem ninguém, o que em si poderia não pôr em causa a sua veracidade, mas são completamente implausíveis e não são, na maioria dos casos, sequer respostas. O que é que José Sócrates espera? Que as pessoas fiquem esmagadas pela sua “determinação” e auto-convencimento e se tornem subitamente estúpidas e aceitem argumentos que parecem os de um adolescente a mentir? A única conclusão a tirar é que ele nos insulta e acha que devemos ficar contentes pelo insulto.
Nem vale a pena perder tempo para refutar a implausibilidade de alguém que vive por conta de um “amigo de infância”, que é um “grande empresário”, e que em tempo de vacas magras para todos, a começar pela maioria das empresas, tem dinheiro a rodos para “emprestar” ao amigo sem sequer anotar o valor total, como quem recebe não sabe quanto lhe é emprestado, que, vivendo de dinheiro emprestado pela banca e pelo amigo, vive uma vida faustosa — e pode-se dizer que o conceito de “faustoso” é dúbio num país pobre, mas neste caso é tudo menos dúbio — e não se percebe como lhes vai pagar, que tem uns empregos de lobbyista internacional e de consultadoria, que infelizmente não são únicos no nosso sistema político, mas nem por isso deixam de ser tributários da influência e dos conhecimentos.
Eu não sei se Sócrates é corrupto ou não e, seja qual for a minha convicção, ela em si não vale nada, e o tribunal o dirá, mas sei que em toda a sua vida política, como já o escrevi há muitos anos, sempre que se tropeça numa pedra, sai de lá José Sócrates. Foi assim com a licenciatura, com as marquises feitas sempre na terra do lado, com múltiplas decisões como ministro do Ambiente e depois primeiro-ministro, com a tentativa bem real de controlar a comunicação social usando os meios e a influência do Governo, com mil e uma coisas não explicadas e ou suportadas em mentiras. Basta-me isso para considerar Sócrates, e os seus imitadores nos outros partidos, a começar pelo meu, um exemplo pernicioso de como é possível fazer carreira política assim, e de como os partidos, como o PS, o PSD e o CDS, são muito mais sensíveis às críticas e dissidências interiores do que às práticas péssimas e à corrupção dos seus membros, agravadas pelas circunstâncias de as fazerem assentes no poder político que obtiveram por via partidária.
É isso que é tóxico em Sócrates, e o PS deveria estar a milhas do que já se sabe e é incontroverso, que viola, se se quiser utilizar o jargão, todos os aspectos da chamada “ética republicana”, que é suposto ser mais do que a lei. Ora, no PS não só permanece uma legião de aduladores de Sócrates, como se permitem manifestar essa adulação publicamente, mesmo quando ela é incómoda para a direcção e para muitos membros do partido em geral. Como no PSD, vários responsáveis pelo BPN, por infracções fiscais, por negócios obscuros, por profissões fictícias, por cursos de favor, por tráfico de influências têm cargos relevantes no partido, passeiam-se nos corredores do poder, e nunca ninguém pensa que isso pode ser muito mais grave do que fazer críticas políticas a uma direcção partidária. Esta complacência, que impregna os aparelhos partidários, é inaceitável.
O que é tóxico em Sócrates é que a sua postura pública, e as cumplicidades que a suportam, representa objectivamente a indiferença nos partidos face a condutas reprováveis no sistema político português e explicam o crescente divórcio entre os portugueses e os partidos e a democracia, e isolam e estigmatizam a mais que necessária luta que é preciso ter contra a corrupção.
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