OE 2014 EMPOBRECE O PRESENTE E HIPOTECA O FUTURO - análise do Grupo de Economia e Sociedade
OE 2014 EMPOBRECE O PRESENTE E HIPOTECA O FUTURO - análise do GES (Grupo de Economia e Sociedade)
A proposta de Orçamento de Estado para 2014 apresentada pelo Governo enferma de dois vícios graves que lhe retiram credibilidade e sustentabilidade.
Não decorre de um indispensável enquadramento de Opções de desenvolvimento a médio prazo, fixando-se, mais uma vez, em meros cortes de despesa pública e exercícios de equilíbrios orçamentais. Estas Opções de desenvolvimento futuro são fundamentais em quaisquer circunstâncias, mas são-no, ainda mais, quando a situação económica e social do País é a que conhecemos.
Por outro lado, a proposta de OE 2014 toma por adquirido que o único farol da política económica do País é o da bondade da meta do saldo orçamental que se propõe atingir a qual, aliás, manifestamente, não poderá ser alcançada, pese embora o anunciado reforço da austeridade, com todas as suas previsíveis consequências negativas sobre as condições de vida das pessoas, das famílias e das empresas.
O modelo de sociedade em risco
É particularmente grave que exista um conjunto de medidas previstas em sede de orçamento que tendem a alterar, pela via do acto administrativo consumado, o modelo de estado social vigente. Veja-se, nomeadamente, o que sucede com os sucessivos cortes nas despesas nos serviços públicos de educação e de saúde, que, somados aos que já se verificaram nos últimos três anos, desqualificam aqueles e abrem caminho à sua privatização. Acresce que se mantem o refluxo das políticas sociais no sentido de uma maior desresponsabilização do Estado em assegurar os direitos às prestações sociais em situações de desemprego ou pobreza, convertendo-as em meros apoios assistenciais. É a desconfiguração do modelo de sociedade que, com esforço, vinha sendo construído, o que verdadeiramente está em causa. O resultado será, para as portuguesas e os portugueses, um outro modo de estar e de viver, menos solidário e menos justo.
Os fundamentos éticos da nossa reflexão
O GES teve ocasião de se manifestar a propósito do OE 2012 e OE 2013 em textos oportunamente divulgados. Nessas tomadas de posição, encontram-se os fundamentos que motivam também esta reflexão, bem como os princípios que a informam.
Temos que voltar a afirmar, hoje, o que escrevemos a propósito do OE 2012: Movem-nos preocupações éticas e de responsabilidade cívica pela construção de uma sociedade mais justa, mais inclusiva, mais solidária e onde o ser humano seja o primeiro sujeito de um desenvolvimento sustentável.
Também continuamos a defender que, embora reconhecendo os actuais constrangimentos de ordem financeira e outros, entendemos que estes não podem ser eleitos como objectivos per se e bem assim que os critérios de avaliação de desempenho da política pública não devem confinar-se a indicadores da redução dos défices ou do peso do endividamento público e privado no PIB.
Reconhecemos e entendemos, ainda, que não é demais salientar que o caminho de uma austeridade financeira excessiva tem efeitos muito graves na economia, incluindo consequências nefastas para a estrutura produtiva e a capacidade de produção nacional, para o nível de desemprego e risco de empobrecimento de largos estratos de população, para o aumento das desigualdades na repartição do rendimento e para o enfraquecimento da coesão social.
A persistência no erro de um empobrecimento colectivo
Assistimos com preocupação a que, com o OE 2014, o País venha a aprofundar, ainda mais, um processo de empobrecimento colectivo já oportunamente denunciado e que se entre num caminho de reforço da anomia social e/ou conflitualidade social declarada, de consequências imprevisíveis.
Como já se referiu, a proposta de OE 2014 evidencia uma obsessão com uma única meta: a redução do défice das contas públicas, elegendo-o como objectivo único da política económica. Trata-se de uma desfocagem perigosa e cheia de consequências para a permanência da recessão económica ou diminuto crescimento económico, bem como para a previsível degradação das condições de vida das pessoas e das famílias, e para o enfraquecimento da coesão social. Cabe perguntar por que razão se insiste num erro que, de há muito, vem sendo denunciado por académicos e por instâncias internacionais e está comprovado pela própria experiência nacional em curso.
É, igualmente, falaciosa a justificação dada para o caminho proposto ou seja a pretensão de financiamento do Estado e dos particulares através dos “mercados”, entenda-se o recurso ao crédito junto dos financiadores privados. Aos mercados interessa que se mantenham elevados os juros a pagar (oportunidades de boa remuneração dos capitais investidos), mas também condições de solvabilidade dos compromissos assumidos pelos devedores. Assim, o regresso ao financiamento pela via do mercado só será possível quando existir um crescimento económico sustentável, o que pressupõe a inversão de políticas de austeridade que o contrariam.
A recusa em renegociar a dívida. Outros pontos fracos.
A - A recusa em admitir a necessidade de renegociação da dívida, de forma a aliviar, significativamente, o erário público do peso excessivo dos actuais encargos com o serviço da dívida em todo o orçamento, com consequências muito negativas para o investimento público e as despesas correntes de serviços públicos essenciais. Sem uma tal renegociação, que permita aliviar os encargos com o serviço da dívida, não se pode esperar a libertação dos indispensáveis recursos para o crescimento económico.
B - Uma fiscalidade que continua a não respeitar regras básicas de equidade e se dispersa por medidas que retiram a necessária transparência ao sistema. Não parece admissível que se mantenha elevada e agravada a tributação sobre os rendimentos do trabalho, quando se reduz, indiscriminadamente, a tributação dos lucros e não se enfrenta devidamente a fuga aos impostos por parte de muitas empresas e, em particular, as grandes empresas. Também consideramos reprovável que se criem impostos especiais para determinadas categorias de cidadãos, como sucede com a impropriamente chamada taxa de contribuição de solidariedade sobre os rendimentos dos pensionistas.
C - Preocupa-nos, sobremaneira, a medida proposta de um corte nas pensões de sobrevivência, porquanto uma tal medida conduz à desconfiguração do actual sistema de segurança social, fragilizando a confiança no seu pilar contributivo. Sendo o sistema de segurança social uma das traves-mestras do nosso estado de direito, não é admissível que se viole o acordo social que esse sistema representa.
D - Analogamente, é inaceitável a ligeireza com que se propõem cortes nos salários dos funcionários públicos, aumento de horário de trabalho e uma designada convergência de pensões, com efeitos retroactivos, em total desrespeito pelos contractos estabelecidos, o que, uma vez mais, para além de ser um acto lesivo dos direitos das pessoas abrangidas, é causa de perda de confiança por parte da generalidade dos cidadãos nas instituições e no próprio Estado.
A falácia da inevitabilidade dos cortes
A justificação, que vem sendo dada de que se torna necessário diminuir a despesa do Estado, perde força quando constatamos que a proposta de orçamento para 2014 deixa inalteradas situações em que se poderiam prever significativas reduções de custos. Por exemplo, o excessivo recurso a prestação de serviços outsourcing; os gastos exorbitantes com numeroso pessoal recrutado para apoio aos gabinetes ministeriais com elevadas categorias remuneratórias e benefícios complementares; as parcerias público-privadas que se têm revelado ruinosas para o interesse público e se deixam incólumes; as rendas pagas ao sector da energia e outros; a fraca celeridade da liquidação das dívidas ao Estado, que priva o erário público de verbas que lhe são devidas e prescrevem; etc.
Acresce que importa lembrar que o défice que se deseja atingir tanto pode ser corrigido pelo lado da despesa como pelo lado as receitas.
Cortes em sectores chave do estado social
A proposta de OE 2014 introduz, ainda, novos cortes no domínio das despesas em sectores-chave do estado social, como sejam a saúde, a educação, a segurança social, com reflexos óbvios na qualidade da prestação destes serviços e na garantia do carácter universal dos mesmos. Temos assistido, nos últimos meses, a decisões de caracter administrativo (o cheque-ensino, por exemplo) que indiciam um propósito de redução do estado social que conhecemos a um estado mínimo de tipo assistencialista, deixando à iniciativa privada a produção daqueles serviços ou transferindo-os, injustificadamente, para as Autarquias, desresponsabilizando, paulatinamente, o Estado Central pela sua prestação efectiva.
A pretexto de fazer face a uma situação financeira conjuntural, a actual governação vem abrindo portas a uma liberalização desenfreada e a um capitalismo sem regras, mesmo em sectores de produção de bens e serviços que, pela sua natureza, não deveriam ficar sujeitos aos mecanismos do mercado, como é o caso da educação ou da saúde. Estamos perante um quadro de transformações sistémicas induzidas, sub-repticiamente, e sem o devido escrutínio democrático.
Todas as medidas, antes comentadas, estão imbuídas de uma concepção de sociedade que persegue as grandes opções realizadas depois do 25 de Abril, as quais não podem ser alteradas, legitimamente, sem um amplo debate colectivo e alargado consenso.
Fragilidades conceptuais e desrespeito pela equidade
Em nosso entender, a proposta de OE 2014, na versão apresentada pelo Governo para debate e aprovação em sede de AR, revela fragilidades graves e não respeita princípios básicos de equidade. Os compromissos com os credores institucionais não constituem, só por si, uma justificação para as medidas escolhidas e apresentadas como inevitáveis e não se podem sobrepor aos compromissos societários com os portugueses que fundamentam a coesão social. Entendemos que Portugal não pode estar condenado à perpetuação das políticas de austeridade que já provaram a sua ineficácia e deixaram um lastro de sofrimento e injustiça ao longo dos últimos 3 anos, que gera anomia social, perda de coesão social e territorial e hipoteca o futuro.
Preocupa-nos, em particular, a situação das pessoas dos estratos mais vulneráveis da sociedade, o seu número crescente, a falta de oportunidades de emprego, trabalho digno e justamente remunerado, as situações de fome e de grande precariedade que atingem muitos destes nossos concidadãos e concidadãs.
Apesar da acção generosa de particulares, das próprias famílias, e das várias instituições de solidariedade social, tal não pode suprir a quebra das prestações sociais da esfera pública e substituir-se à política social baseada em direitos.
Aflige-nos ver que muitos quadros com formação académica se sentem obrigados a sair do País contra sua vontade, por não encontrarem trabalho compatível com a sua formação, esvaziando o País de um capital humano acumulado ao longo das últimas décadas e imprescindível para o desenvolvimento futuro.
Grande desigualdade e fraca redistribuição fiscal
Vemos com apreensão que a desigualdade aumenta e cresce a concentração da riqueza no topo da pirâmide, sem que existam mecanismos que contrariem a já visível perda de coesão social. A progressividade dos impostos pessoais é instrumento de que na proposta de OE 2014 se abdica, com o argumento de que temos as taxas mais elevadas entre os nossos parceiros europeus, ignorando que Portugal é um os países mais desiguais da Europa, o que justifica um maior esforço redistributivo pela via do sistema fiscal.
Contra a corrupção, maior transparência nos negócios
A corrupção declarada ou larvar, que é um dos sinais da crise, alastra e não se vê que existam medidas que se proponham preveni-la e puni-la. Trata-se de um verdadeiro flagelo nacional em que toda a sociedade civil se deveria empenhar exigindo transparência nos negócios privados e públicos e comportamentos éticos irrepreensíveis por parte dos agentes económicos e políticos por eles responsáveis. Ao Governo competiria dar um sinal de tolerância zero que o OE deveria espelhar.
Conclusão
A avaliar por comportamentos anteriores, a maioria parlamentar irá viabilizar a proposta do Governo e pouco aproveitará das críticas que a Oposição e a sociedade civil não deixarão de fazer. Resta esperar que a opinião pública reaja, que a Academia não se refugie em sepulcrais silêncios e que cumpram o seu papel de vigilância e supervisão democrática os diferentes Órgãos do Estado.
Lisboa, 17 Outubro 2013
O Grupo Economia e Sociedade (GES)
António Natalino Martins. Carlos Farinha Rodrigues. Cláudio Teixeira. Elsa Ferreira. Flamínia Ramos. Isabel Roque de Oliveira. João Lourenço. Manuel Brandão Alves. Manuela Silva. Margarida Chagas Lopes. Maria Eduarda Ribeiro. Maria Emília Castanheira. Maria José Melo Antunes.
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