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Inveja de Anthony Bourdain - por Daniel Oliveira -

Inveja de Anthony Bourdain

Daniel Oliveira (www.expresso.pt)
8:00 Quinta feira, 12 de abril de 2012

Anthony Bourdain é chefe de cozinha. Tem um programa de culinária. Errado. Anthony Bourdain tem um programa sobre comida. Ou seja, Anthony Bourdain tem um programa sobre a vida. Chama-se No Reservations e passa na SIC Radical. Não se percebe porque não é transmitido na SIC Notícias ou mesmo na SIC generalista, já que é dos melhores programas sobre cultura, política e sociedade que já pude ver.

Tenho uma infinita inveja de Bourdain. Gosta de viajar, de comer e de falar com pessoas. Para ganhar a vida, viaja, come e fala com pessoas. Mostrando que nós somos o que comemos, foi capaz de fugir do mero programa de receitas ou de um guia turístico de restaurantes. Aliás, nos países que visita, Bourdain raramente entra num restaurante. Vai a casa das pessoas, come em esplanadas populares ou na rua. Procura o menos óbvio. E o menos óbvio são os lugares onde as pessoas normais comem e cozinham. É assim que conhece um povo. E a partir daqui fala de tudo o resto.

Os dois últimos programas que vi, da nova série, foram no Haiti e na Nicarágua. Alguém se lembra de ir a estes países para fazer um programa sobre culinária? Lembra-se ele, porque a comida acaba sempre por ser um pretexto, ocupando um espaço relativamente pequeno em cada programa. Como na vida, a mesa é apenas o melhor lugar para começar uma boa conversa. Esta ideia, absolutamente natural nos povos do Mediterrâneo, é uma das barreiras culturais que temos com os povos do norte da Europa. Que comer é mais do que uma necessidade, que comer bem não é um luxo. É onde começa a cultura de um povo. Diz-me o que comes e como comes, o que bebes e como bebes, dir-te-ei como vives e como pensas. E é por isso que No Reservations diz mais sobre o Mundo do que centenas de documentários políticos.

Na aparente simplicidade das suas "reportagens", Anthony Bourdain não facilita. E põe-se em causa. No episódio sobre o Haiti esquece rapidamente os prazeres da mesa. Até porque, confessa, a comida podia ser melhor. No meio da destruição e da miséria, desfoca. Bourdain está sempre a desfocar, a dispersar, a interessar-se por coisas diferentes do que as supostamente o levaram ali. É um verdadeiro viajante, portanto.

Numa rua de Port-au-Prince, servido por uma vendedora que cozinha ali mesmo, no meio das ruinas, onde as pessoas vivem, vai-se juntando uma multidão. Repara que não olham para as câmaras ou para ele e para o seu anfitrião haitiano. Olham para a comida. Tendo dinheiro da produção para gastar, decide o que qualquer pessoa com coração decidiria. Compra toda a comida à vendedora e manda servir. Ficam todos a ganhar. Rapidamente repara no seu erro. Uma multidão esfaimada invade o restaurante improvisado na rua. A situação fica descontrolada e Bourdain arrepende-se do seu gesto inconsequente.

Tira do episódio algumas conclusões difíceis para a solidariedade pret-a-porter tão ao gosto ocidental. Para ajudar as pessoas é preciso tempo, persistência e sacrifício. E a partir daí parte para uma viagem com Sean Penn, o seu novo anfitrião. Por não se tratar de mais um ator que dedicou cinco minutos do seu tempo e da sua fama a uma causa humanitária, o cicerone vale o tempo que o episódio lhe dá. Vive grande parte do seu tempo no Haiti, país onde foi para ajudar durante uma ou duas semanas. Está lá, conhece o terreno, trabalha num campo de desalojados. É um bom "tradutor".

Aquele pequeno episódio foi, para Bourdain, uma lição de humildade e permite-lhe questionar o papel dos media e das causas da moda que nos fazem sentir tão bem, o seu próprio papel e a superficialidade da forma como conhecemos mundos que nos são estranhos. Um cozinheiro, que, a propósito do que cada um come, faz um programa de televisão com mais substância social e política do que a maioria das reportagens que vemos na televisão, questiona o que faz. Como poucos jornalistas o fazem.

Anthony Bourdain esteve em Lisboa e vai dedicar o seu terceiro programa a Portugal. Brevemente o veremos na televisão. Tenho curiosidade. Talvez quando falar sobre o meu País perceba que também ele é um pouco superficial. Mas tem uma vantagem. Assume que é um turista atento que apenas faz o que gosta: comer, viajar e conversar. E que vai aprendendo um pouco, muito pouco, com isso. Não conta a história toda de cada país. Apenas divide connosco o pouco que viu. Como eu o invejo.

Em baixo, apenas os primeiros 15 minutos do programa sobre o Haiti. Sem legendas.

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