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Vaclav Havel - e O Poder dos Sem Poder -

Quando se perde um intelectual da dimensão, espessura e qualidade de Vaclav Havel perde-se um manancial de informação, conhecimento e sabedoria. Mas quando se perde um intelectual excepcional que também conseguiu ser um político de excepção numa fase turbulenta da história do séc. XX, então estamos perante várias perdas, sobretudo por parte de alguém que soube desenvolver um combate contra a ex-URSS que dominou durante cerca de 60 anos todos os países do centro e leste europeu - através duma ideologia totalitária derivada do czarismo absoluto e de que, hoje, Putin ainda é uma sequela no sistema "democrático" russo, a avaliar pela forma como combina o artificial abandono e regresso ao poder, em pleno contexto de fraude eleitoral e de corrupção no aparelho de Estado. O que não é novidade em ditaduras disfarçadas de democracias pluralistas - em cujo sistema o papel da burocracia é predominante, já que dela depende toda a "dinâmica" da vida social e económica. E que é controlada por uma oligarquia de funcionários do partido, da clic militar e dos serviços secretos - que estão infiltrados em todas as áreas da sociedade.
Havel conhecia bem a natureza e papel da ideologia - que era uma janela para o mundo e oferecia aos homens a ilusão da identidade, da dignidade e da moralidade no quadro dum comunismo de Estado que espoliou, torturou a assassinou milhões de homens e de mulheres ao longo de sete ou oito décadas de comunismo, desde Lenine até à queda do Muro de Berlim - para o qual muito contribuíram L.Valesa (Polónia), o Papa João Paulo II, Gorby e, claro, um conjunto de intelectuais e cientistas sociais checos, de que aqui destaco Vaclav Havel, R. Battek, Vaclav Benda (matemático), P. Uhl entre outros.
Havel também sabia que quanto mais fraca é uma ditadura menos estratificada é o seu nível de modernização, o que facilita o campo de acção do ditador sobre a sociedade e a economia. Ou seja, o ditador pode empregar mais ou menos o seu poder e disciplina tanto mais consiga evitar os processos complexos relacionados com as funções sociais típicos de sociedades mais modernas e complexas. Ao invés, quanto mais moderna, avançada e complexa for uma sociedade mais difícil se torna ao ditador exercer o seu mando absoluto sobre ela, na medida em que esse tipo de sociedade ganhou autonomia face ao poder, tem indivíduos com ligações internacionais importantes que estão conectados entre si e operam em rede. Daí a extrema importância dos dissidentes na revolução de veludo na antiga república da Checoslováquia, antes da separação de veludo entre as duas repúblicas nessa federação.
Havel foi exímio na avaliação do poder dos dissidentes e na identificação do papel que poderiam desenvolver contra a ditadura vigente teleguiada a partir de Moscovo, como mais um satélite regional. E foi do exame atento que Havel fez dos dissidentes e do potencial que "o poder dos sem poder" (powerless) comportava, que se chegou à conclusão da natureza do poder e das circunstâncias no seio da qual esses "sem poder" operavam.
O nervo da acção de Vaclav Havel tinha, de facto, como referência O Poder dos sem Poder, que se tornou numa síntese genial no plano sociológico e até no domínio sociopolítico, analítico e da literatura mais alargada aos aspectos da arte, ciência e cultura para desenvolver um tal poder de abstracção capaz de descrever os fenómenos sociais que questionavam a sustentabilidade da ditadura comunista vigente, e que reclavama pela urgência das democracias pluralistas no centro e leste europeu, e em particular na então Checoslováquia.
Foi a partir desse conceito que Havel iluminou as especulações filosóficas e políticas essenciais à mudança a fim de operar a modernidade que se exigia na sociedade, na economia, no sistema político e, sobretudo, ao nível das mentalidades e dos velhos hábitos formatados ao longo de décadas de estalinismo ideológico controlado pelos aparelhos partidários fiéis a Moscovo em puro alinhamento à chamada doutrina da soberania limitada imposta por Leonidas Bresniev, na década de 70 do séc. XX.
Havel compreendeu que podia "jogar" com este novo conceito operacional para institucionalizar a realidade post-totalitária, liberta de moralismos do passado, e começar a construir a utopia democrática e exterminar definitivamente com a ditadura comunista no seu país, teleguiada pelo então império da ex-URSS que ruiu como um castelo de cartas.
Vaclav Havel partiu, mas conseguiu criar, com a ajuda dos dissidentes, uma sociedade civil com massa crítica, com opinião livre, com partidos políticos diferenciados que se respeitam e competem entre si pela captura do poder em contexto de eleições, e que sabe diferenciar as várias instâncias do poder, que hoje é limitado pela lei, e não pelo arbítrio do ditador que interrompia a ligação entre as pessoas instilando neles o medo, ingrediente básico que fazia do povo um rebanho obediente totalmente controlado pela ditadura de partido único que manietava o Estado.
Havel, e os seus amigos dissidentes, acabaram com esse MEDO cristalizado no modelo do ditador cesarista, acabando também com a corrupção de Estado/partido generalizada, com o oportunismo da clic militar e com a mediocridade em que assentava a sociedade checa sob a ditadura comunista que Vaclav Havel soube escavacar.
Foi sobre esta personalidade maior do séc. XX que o miserável PCP votou contra uma manifestação de pesar votada pelos demais partidos com assento parlamentar.

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