sexta-feira

O festim - por António Vitorino -

Esta semana, o celebrado articulista britânico Timothy Garton Ash escrevia no Guardian que os duzentos e cinquenta mil documentos classificados do Departamento de Estado americano na posse da organização WikiLeaks constituem o sonho dos historiadores e o pesadelo dos diplomatas. dn
Resta saber o que é que eles significam para o conjunto dos demais cidadãos que não se revêem naquelas duas categorias directamente interpeladas pela "fuga" em causa.
A história tem todos os condimentos para ser um daqueles tópicos que ocuparão as primeiras páginas dos órgãos de comunicação nos próximos meses.
Um sargento de 23 anos terá estado na origem do desvio dessa enorme quantidade de documentos com diversas classificações de reserva de acesso, confidencialidade ou um nível (mínimo) de secretismo.
Este facto, por si só, é altamente revelador sobre as regras, métodos e procedimentos da Administração americana. Aparentemente a fuga não tem por base a tradicional actuação dos serviços de espionagem estrangeiros que têm como alvo principal o acesso a "segredos" de outros Estados. Sejam estes Estados adversos ou mesmo Estados amigos, o acesso a informações não públicas constitui sempre uma recompensa para quem se dedica a tais actividades.
Sabe-se que a Administração americana dispõe de poderosos instrumentos de detecção e prevenção da acção desses serviços estrangeiros, envolvendo verbas fabulosas. Nesse aspecto não poderia haver golpe mais severo na credibilidade dos EUA do que uma fuga perpetrada, aparentemente de forma isolada, por um jovem sargento não ao serviço de uma potência estrangeira mas motivado por um acrisolado apego ao valor absoluto da "transparência" no acesso à informação. Mais tarde saberemos se esse apego era ou não desinteressado...
Bem se pode dizer que o golpe mais severo é esse mesmo, o da vulnerabilidade no acesso aos documentos em causa, muito mais do que o conteúdo dos mesmos, naquilo que se conhece até à data.
Com efeito, decerto que ninguém que esteja habituado a estes meandros se surpreenderá com o teor dos telegramas enviados pelas embaixadas americanas para Washington. Com efeito, quando se mantêm contactos com diplomatas (americanos ou de qualquer outro país), tem de se admitir por definição que aquilo que se diz, em função do interesse do interlocutor, de uma forma ou de outra acabará por transmitido à sua respectiva hierarquia. A fuga da WikiLeaks põe apenas termo à ilusão de que essas conversas podem ficar no plano reservado em que foram tidas...
Contudo, aquilo que veio a público até este momento, ti-rando o "picante" da identificação dos interlocutores e o selo oficial dos respectivos suportes documentais, não constitui, com uma ou outra excepção, nenhuma novidade de maior. Antes pelo contrário, seja a avaliação do regime iraniano feita por outros países árabes, seja o embaraço chinês com o delirante regime norte-coreano, sejam as apreciações sobre a conduta de vários líderes mundiais de Merkel a Putin, passando por Sarkozy ou Berlusconi, a essência das fugas e os factos que suportam tais juízos já eram, na sua esmagadora maioria, do domínio público. Fica-se assim a saber que não é por falta de boas fontes ou por desatenção que a política externa americana pode cometer erros...
Por isso, os diplomatas americanos até nem saem mal na fotografia das fugas da WikiLeaks.
Contrariamente às teses dos que pretendem fazer de Julian Assange uma Joana d'Arc da transparência e da liberdade de expressão, afinal, a informação aberta e pública é muito mais ampla e significativa do que nos querem fazer crer. Nos países ocidentais, claros, já que nos demais não parecem existir sargentos de 23 anos dispostos a contribuir para este festim de informação.

Obs: António Vitorino socorre-se aqui daquele que foi, talvez, o melhor historiador do pós Guerra Fria que explicou ao mundo o processo das chamadas revoluções de veludo e das transições (democráticas) da Europa central e de leste, na sequência da implosão da ex-URSS e da queda do Muro de Berlim - para explicitar a gigantesca fuga de informação da história da América. Que, por desleixo, traição ou desafio informático foi desenvolvido e que um bando de activistas sem escrúpulos da W. racionalizou metendo a boca no trombone, apenas com o propósito de embaraçar, achimcalhar e debilitar o aparelho diplomático da República Imperial e da Europa - obrigando, doravante, a rever todo o quadro de confiança e o formato das comunicações politico-diplomáticas que terão lugar no futuro com as demais nações.

Naturalmente, é o aparelho diplomático norte-americano que fica mal na fotografia, porque se revelou tremendamente incompetenete para guardar as suas próprias informações, mas o mundo das ONGs e dos Movimentos Sociais Anti-Globalização que faz desse festim um permanente carnaval - com a justificação de que é urgente atacar o capitalismo neoliberal fixado pelo velhinho Consenso de Washington - também merecerá devida ponderação, até porque já existem inúmeros dissidentes da W. fundada-financiada e gerida autocráticamente por essa pseudo-Joana D' Arc dos novos tempos, que declarou querer refundar a Wikileaks numa organização decente e com finalidades verdadeiramente vocacionadas para a preservação da paz e da seguranças internacionais. Mas isso é o que todas as ONGs dizem para angariar fundos, depois o que fazem com eles é outra "estória".

Tudo isto é revelador de que a W. não passa dum mensageiro agiota que procura ganhar algo com a divulgação em massa de informações, nem que, para o efeito, tenha de esfrangalhar a democracia, a liberdade e a segurança, valores que ela diz defender.

E em Portugal, através do zeloso BE, já há vontades que vão multiplicar os "sites-espelhos" da organização a fim de continuar o festim que, afinal, todos já conhecíamos.

Com sorte (ou azar) ainda se vem a descobrir alguns vícios mais íntimos de alguns membros do BE, da esquerda-caviar que veste Lacoste e anda vela Seaside - revelando que o mundo está perigoso e os factos, esses, estão cada vez mais "subversivos", como diria o historiador citado por AV.

Neste caminho, não devemos omitir que a maior das humilhações feita pela Wikileaks de Assange, é o atestado de incompetência que ele passa à classe dos jornalistas no seu conjunto, aliás, o fundamento para o que Assange fez radica, precisamente, na incompetência dos jornalistas por, no seu entender, estes terem deixado de assegurar a sua função de "cães-de-fila" dos políticos, o que diz muito acerca de les uns et les autres. De tal maneira que se tornam quase indistintos.

E o mais estranho nesta ofensa colectiva à classe, é que os desgraçados dos jornalistas comeram e calaram...

Pergunto-me porquê?!

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