A importância do palavrão. Evocação de Millôr Fernandes
Nota prévia: Esta prosa está pejada de palavrões, mas no seu contexto sociológico e aplicados em rigor, digamos, "científico". É assim que deve ser lido e entendido. No fundo, cada palavra corresponde a numerosos significados. E apesar das convenções determinarem o que cada uma delas significa eu posso, a cada momento, supôr que a palavra - e a linguagem no seu conjunto - é mais plástica e flexível. Bem sei que isso comporta uma vantagem e uma desvantagem: vantagem porque ultrapassamos os limites impostos ao vocabulário convencional, por outro, e como desvantagem, podemos ferir ou susceptibilizar alguém com tal linguagem mais vernácula. Mas talvez pior ainda é quando nos chamam "filho da puta" como quem nos convida para almoçar, ou nos mandam para o c****** como quem nos oferece uma viagem às Maldivas. Mas..., lá está, tudo depende de quem nos manda e no tom com que é feito. Umas vezes vamos e gostamos, outras não vamos e detestamos. É aí que cai o carmo e a trindade com toda a herança e peso do falso moralismo que anda sempre associado à linguagem. Diria que esta é a nossa linguagem civil deste mundo cabrãozinho e filho de putinha que vamos tecendo neste tempo que passa. O ideal mesmo seria fazer-mo-nos entender apenas com um olhar, um sinal, um gesto... Por vezes, como sabemos, as palavras só atrapalham. F****!!!
A Importância do Palavrão, por Millôr Fernandes
O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de (foda-se!) que ela diz.
Existe algo mais libertário do que o conceito do “foda-se!?”
O “foda-se!” aumenta a minha auto-estima, torna-me uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas, liberta-me.
- “Não quer sair comigo?” então, “foda-se!”
- “Vai querer mesmo decidir essa merda sozinho(a)?! então, “foda-se!”
O direito ao “foda-se” deveria estar assegurado na Constituição.
Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para dotar o nosso vocabulário de expressões que traduzem com maior fidelidade os nossos mais fortes e genuínos sentimentos.
É o povo a fazer a sua língua. Como o latim vulgar, este virá a ser o português vulgar que vingará, plenamente, um dia.
“Comó caralho”, por exemplo. Que expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade do que “comó caralho”?
“Comó caralho” tende para o infinito, é quase uma expressão matemática.
A Via Láctea tem estrelas comó caralho!
O Sol está quente comó caralho!
O universo é antigo comó caralho!
Eu gosto do meu clube comó caralho!
O gajo é parvo comó caralho!
Entendes?
No género do “comó caralho” mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso “nem que te fodas”. Nem o não, não e não e tão pouco o nada é eficaz e sem nenhuma credibilidade, “não, nem pensar!” o substituem.
O “nem que te fodas” é irretorquível e liquida o assunto. Liberta-te, com a consciência tranquila, para outras actividades de maior interesse na tua vida.
Aquele pintelho, de 17 anos, que lá tens em casa, atormenta-te pedindo o carro para ir surfar na praia? Não percas tempo, nem paciência, solta logo um definitivo: “Huguinho, presta atenção, filho querido, nem que te fodas! O impertinente aprende logo a lição e vai para o Centro Comercial encontrar-se com os amigos, sem qualquer problema e tu fechas os olhos e voltas a curtir o CD…
Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um “pu-ta-que-o-pa-riu”, falando assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba.
Diante de uma notícia irritante um qualquer “puta-que-o-pariu”, dito assim, põe-te outra vez nos eixos. Os teus neurónios têm o devido tempo e clima para se reorganizarem e encontrarem a atitude que te permitirá dar o devido troco ou livrares-te de maiores dores de cabeça.
E o que dizer do nosso famoso “vai levar no cu”? E a sua maravilhosa e reforçadora derivação, “vai levar no olho do cu”? Já imaginaste o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha do seu interlocutor e solta: “Chega, Vai levar no olho do cu!”
Pronto, retomaste as rédeas da tua vida, a tua auto-estima, desabotoas a camisa e sais à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor íntimo nos lábios.
E seria tremendamente injusto não registar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: “Fodeu-se!” e a sua derivação ainda mais devastadora: “Já se fodeu!”
Conheces definição mais exacta, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, uma vez proferida insere o seu autor num providencial contexto interior de alerta e auto-defesa.
Algo assim como quando estás sem documentos do carro, sem carta de condução e ouves uma sirene da polícia atrás de ti a mandar-te parar. O que dizes: “Já me fodi!” Ou quando te apercebes que és de um país onde quase nada funciona, o desemprego não baixa, os impostos são altos, a saúde, a educação, a justiça são de baixa qualidade, tal como os empresários que procuram lucro fácil e rápido, as reformas são baixas, o tempo para a reforma aumenta…o que é que tu pensas? Já me fodi!
Então:
-Liberdade,
- Igualdade,
- Fraternidade,
- E… Foda-se!!!
Mas… não desespere, este país ainda vai ser “um país do caralho”!
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