segunda-feira

A importância de Oscar Wilde: a auto-limitação

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O único grande romance de Oscar Wilde talvez tenha sido o Retrato de Dorian Gray. Conta a história de um jovem que se envaidece de si mesmo, tornando-se amante de si mesmo e da arte pura. Com o passar do tempo aquelas carecterísticas acentuam-se em Gray. A dado momento tenta mudar de vida para escapar às suas inanidades sociais, tenta dar um rumo à sua sensaborona vida que estava a despedaçar a sua existência, a escavacar a sua própria personalidade.

O romance narra a forma como a beleza física de Gray, numa Inglaterra aristocrática e hedonista, se torna numa fonte de inspiração para outras pessoas e obras de arte, e, com isso, alimentar toda uma mentalidade absolutizada em torno da beleza física - a que não são alheios os nossos tempos. Tempos frívolos, hedonistas, materialistas, calculistas, permissivos, no fundo, característico daquilo que Gilles Lipovetsky denominou no seu livro Império do Efémero - O século da sedução e do efémero. Ou, se quisermos, a Era do vazio, também para utilizar uma expressão feliz do mesmo autor. Um mundinho centrado no consumo, aturdido pela publicidade, infantilizado e influenciado pelos personagens que estão na moda sem, com isso, conseguir estabelecer sistemas de pensamento, teorias ou formulações possíveis para a resolução dos problemas sociais e económicos do nosso tempo.

Daqui nasce o homem suave, desprovido de pensamento, de reflexão mas que nem por isso abdica do poder, da gula do poder, da gula do status, da gula dos privilégios públicos que certas funções no aparelho de Estado concedem aos seus titulares. De se achar o máximo, apesar de não se lhe conhecer uma única ideia em 35 anos de democracia em Portugal.

Oscar Wilde, apesar de ser um homem do séc. XIX, legou-nos esse retrato do homem fútil que se apaixonou por si próprio, mostrando-nos a face de um aristocrata cínico e hedonista cujo único propósito na vida é o de perseguir o prazer através da sua própria beleza. Como quem procura regressar aos ideais helénicos a fim de criar novos estados de alma, novas euforias.

Já se percebeu que a nossa vida pública também comporta este tipo de pessoas, ensimesmadas, egocentricas, profundamente narcísicas. Usando e abusando não (já) da beleza, como Gray, mas usando e abusando duma certa arte do oportunismo, do calculismo, do aproveitamento da posição pública para se locupletarem doutros poderes ou funções a que não têm direiro por mérito próprio. Um mérito que só se conquista mediante eleições.

Mas como no Retrato de Dorian Gray - alguém dizia que será limitado pela tristeza do seu destino, já que quando a mocidade passar, Gray descobrirá que já não tem mais trunfos, apenas lhe restam as vitórias medíocres que a recordação do passado lhe proporcionará, mas que no presente o tempo e a memória se encarregarão de tornar ainda mais amargos e destroçados.

Onde é que pretendo chegar? Ao simples facto de que não devemos ser gulosos, nem alimentar nenhum dos outros pecados capitais que nos tornam infantis e escravos da fealdade do poder. Sem esta auto-limitação, que só poucos sabem cultivar, seja na nossa vida privada ou mais notóriamente na esfera pública, acabaremos por não gostarmos de nos ver reflectidos no espelho. Ficamos horríveis, velhos, cheios de fealdade. Como na política, também não podemos manipular os ponteiros do tempo, e dizer:

  • agora é, de novo, o tempo do 25 de Abril;
  • agora o Salazar, já com 150 anos, ainda está vivo e sentado no cadeirão de S. Bento mesmo a jeito para levar umas boas bordoadas;
  • agora vamos todos fundar os partidos democratas em ambiente de plena democracia;
  • agora vamos todos para o exílio e de lá reportar umas radiofonadas anti-salazarentas - para refazer a história e apurar a biografia;
  • agora vamos extinguir a PIDE;
  • agora vamos sair do PCP - porque percebemos que queremos integrar partidos verdadeiramente democráticos. Alguns deste alienados demoraram imenso tempo a perceber isso;
  • agora vamos, novamente, escavacar o Muro de Berlim, dizer asneiras à ex-URSS e fazer uma estátua a Gorby.

Esta manipulação do tempo é técnicamente impossível, senão em pensamento. Mas há ainda em Portugal alguns históricos que não perceberam o retrato que estão pintando deles próprios. Não percebem as baboseiras que debitam nas péssimas entrevistas que dão. Não entendem que apenas estão dando tiros no pé. Julgando-se moços, vigorosos, importantes, necessários, imprescindíveis mesmo à República. E a República, como é complacente, ri-se, envergonha-se, condói-se e pouco ou nada diz - apenas para não envergonhar certos desses magnatas do vazio que passeiam a sua alienação e surdez pelos passos perdidos de S. Bento.

Não percebendo o ridículo em que incorrem ao projectar de si próprios um poder que não têm, uma influência que, na realidade, nunca tiveram e um sistema de pensamento a que foram sistemáticamente alheios. Porque, em rigor, tirando o velho Salazar que serviu de saco de boxe para alguns pugilistas emergentes, nunca fizeram nada de original na vida e vivem do mecenato político há mais de três décadas.

Bem sei que esses novos velhos do Restelo dizem: se eu pudesse ser sempre moço, mesmo quando envelhecesse... Por um milagre faria tudo. Sim, não há no mundo, como diria Wilde, o que eu não pudesse dar em troca. Daria até a alma, em troco do naco do poder...

Este exemplo de Gray e o recurso à literatura é importante porque nos mostra mais fácilmente os vícios de certos amantes do poder, de certos artistas das letras que vivem do tal mecenato, amantes do abstracto e de coisa nenhuma. Numa espécie de neo-realismo do vazio que tais condutas hedonistas nos revelam.

Alguns players da nossa esferazinha pública não conseguem escapar aos seus próprios sentimentos. Não sabendo o querem, a não ser um naco de poder que desejam negociar sem ir a eleições. Porque se julgam gozar dum status à parte, supra-numerário que os permite arrumar uma prateleira de platina, resguardados da poeira da história.

As pessoas, essas que não sabem o que é o vitupério e desconhecem o que é a auto-limitação kantiana, incorrem fácilmente na asneira, na alarvidade, no agigantamento de si mesmos incorrendo no pior dos ridículos que um homem pode ter. Armados em estetas do vazio, não sabem já que o espelho devolve uma imagem decadente, cheia de falhas, de oportunismos, de traições, de deslealdades, no fundo, com uma imagem desfigurada. Desfigurando também a própria imagem da democracia - embora falando dela como coisa perfeita.

Entre nós chegou-se a este paroxismo. De facto, a literatura sempre foi um veículo de excelência para compreendermos as motivações das pessoas, fixar as suas trajectórias e concluir pela moral ou imoralidade de certas condutas.

O Retrato de Dorian Gray do genial Oscar Wilde evoca-me certos poetas decadentes que em Portugal tudo sacrificam à gula do seu próprio hedonismo e efémero. E isto, por razões políticas, de temperamento, de estilo e até de liderança, só pode terminar mal a prazo. Ainda que no imediato se possa vender a alma ao diabo.

A história política está repleta deste tipo de deslealdades e de niilismo em tons devoradores.