sexta-feira

VISIONÁRIO PRAGMÁTICO - por António Vitorino -

VISIONÁRIO PRAGMÁTICO, in dn
A escolha das imagens é da n/ responsabilidade.
O sublinhado também.
António Vitorino
jurista
Amanhã, na Faculdade de Direito de Coimbra, ocorrerá uma sessão de homenagem a Francisco Lucas Pires. Passam dez anos sobre o seu desaparecimento e, além dos seus familiares, um grupo de amigos e admiradores tomou a iniciativa de recordar não apenas o homem e o político, mas também o académico e o pensador.
A riqueza da personalidade de Lucas Pires e a dos seus traços humanos distintivos não careciam nem da prova deste tempo que passou sobre a sua morte nem da pluralidade daqueles que ora partilham esta memória comum.
A cada um, Francisco Lucas Pires tocou de maneira própria e segundo uma óptica de sensibilidade humana que fazia dele uma personalidade de excepção. Há os que retêm dele a criatividade e a imaginação do discurso político, servido por uma mestria no uso da língua portuguesa. Há os que se reportam sempre a essa experiência pioneira de libertar a cultura de uma certa presunção de aprisionamento à esquerda, baralhando as referências com inegável deleite e talento. Há ainda os que hoje recordam o pioneirismo do chamado "grupo de Ofir", onde os ideais liberais tentaram encontrar um travejamento afirmado num campo político - o da direita - que no âmago da sua tradição nunca o tinha sido.
Enfim, há os que guardam dele, da sua acção, do seu exemplo, o contributo esclarecido e firme para a integração de Portugal na União Europeia. Não surpreenderá que seja sobretudo entre estes que me conto.
Desde logo porque, como seu colega no Parlamento Europeu, pude testemunhar que Francisco Lucas Pires tinha granjeado, quer nas instituições europeias quer na família política democrata-cristã a que pertencia, um estatuto de autoridade intelectual e política pessoal que mais nenhum outro representante político português teve ou viria a ter. Esse peso político pessoal advinha-lhe da sua visão sobre a Europa, não dos votos que pudesse reclamar ou das circunstâncias passageiras de uma liderança partidária.
Com efeito, aqueles que passaram pelos areópagos europeus sabem como é difícil fazer ouvir uma voz individual, e só a qualidade intelectual e a humana de Francisco Lucas Pires lhe permitiram, num curto espaço de tempo, ganhar a atenção e a influência real de que desfrutou, sobretudo naqueles domínios de matérias a que havia dedicado o essencial do seu estudo e intervenção: a integração política, a cidadania, a identidade cultural europeia.
O seu pensamento europeu vai beber nas raízes dos fundadores democratas-cristãos, mas a originalidade da síntese do seu pensamento europeu assenta na conciliação de um modelo político-institucional de matriz federalista com uma dimensão das políticas em concreto que incorporam o respeito pela dignidade e igualdade humanas, os laços de solidariedade decorrentes das diferentes origens nacionais e a procura de uma matriz cultural assente na tolerância e na diversidade.
Nesta procura de síntese não raras vezes converge, quer no diagnóstico da situação quer na formulação das propostas de solução, com um outro europeu notável, também ele formado na escola da democracia-cristã mas tendo assentado arraiais no mundo político sindical e socialista: Jacques Delors.
Na inquietação comum que percorre o pensamento de Lucas Pires e de Delors encontramos os mesmos dilemas e as mesmas convicções. Ambos partilham a certeza de que a integração europeia é a única via consistente para os europeus responderem aos desafios de um mundo em profunda mudança, mas ambos também percebem que as receitas clássicas federais são insuficientes, porque demasiado enquistadas em construções institucionais pouco flexíveis para uma União Europeia em vias de um grande alargamento exigido pela justiça e pelo devir da história continental. Ambos nos deixaram reflexões lúcidas e interrogações prementes, umas e outras motivadas por uma visão de futuro e por uma preocupação de pragmatismo na obtenção de resultados.
A melhor homenagem a Francisco Lucas Piras é, pois, prosseguirmos nesta incessante procura dos novos caminhos europeus que ele, como visionário pragmático, tão bem, nos soube abrir.
Obs: É admirável a forma como António Vitorino descreve a pessoa complexa de Francisco Lucas Pires [link] - cuja vida foi ceifada aquando da inauguração da Expo-98, já de regresso a Coimbra. Então, a 1ª nota que me ocorreu foi supôr como Deus é um grande "maroto", na medida em que sendo Ele o coordenador-mor de tudo e de todos, não conseguiu evitar essa tragédia, ainda na flôr da idade. Este pensamento conduz-me a outro, emanado e densificado pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman, quando sugere que teríamos todos grande vantagem em pensar "o que vamos dizer" (ou melhor, o que poderíamos dizer) no dia do nosso próprio funeral, como será esse dia pensado pelo próprio!?. Será um exercício atípico, mas não tão estranho quanto pareça à 1ª vista.
Quase já tudo foi dito por AV, resta-me aqui recordar a bondade da sua pessoa, a superioridade da sua inteligência, a sua imensa tolerância, a forma torpe e canalha como um dia o Paulinho Portas (hoje, das "bombas gasolineiras", volvido o ciclo da lavoura e da pesca num populismo crónico de caça ao voto) se lhe dirigiu em directo num programa de tv; a sua enorme cultura que fazia dele um cidadão do mundo, um homem cosmopolita com uma muito determinada visão europeia, um assunto, de resto, que dominava eficientemente e até escreveu livros, ensaios e artigos de opinião sobre o tema. Uma pessoa qualificada e de grande bondade, sempre aberta à inovação e à integração de conhecimento, intra e extra-muros.
É sempre uma tragédia quando estas coisas sucedem na flor da idade, quando as pessoas são de boa índole, inteligentes e contribuem para o bem comum. Por maioria de razão sou levado a pensar que se Francisco Lucas Pires hoje ainda fosse vivo Paulinho das "bombas" nunca teria deixado de ser o que sempre foi: aquele jornalista franco-atirador que fez do abate político a Cavaco o móbil da sua vida. E isto só tem importância por uma razão (política): é que FLP faria certamente a diferença em matéria de direita em Portugal, hoje o cds seria um partido mais evoluído, mais tolerante, mais abrangente e isso traduzia-se, seguramente, num ganho acrescido para a Democracia, a Liberdade e o Desenvolvimento em Portugal.
Lucas Pires foi um homem grande que engrandeceu Portugal e os portugueses.