SÍNDROME DA MANTA CURTA
António Vitorino
jurista
Há um ano seria muito difícil prever a evolução dos preços dos bens alimentares registada nestes últimos meses. Essa dificuldade não decorre apenas de incapacidade de previsão, mas também da diversidade das causas do sucedido.
Sabia-se que seria inevitável que o aumento dos preços dos combustíveis acabaria por ter reflexo no preço dos bens agrícolas, atenta a incorporação no seu valor final dos custos inerentes na agricultura mecanizada e nos próprios fertilizantes utilizados.
De igual modo era desde há bastante tempo evidente um aumento da procura de cereais, correspondendo a um crescente número de consumidores em países em vias de desenvolvimento, designadamente na China e na Índia, cuja dieta alimentar evoluiu para um crescente consumo da carne, o que representa uma pressão sobre as matérias-primas utilizadas nas rações para animais.
O que já não se podia saber era que a última produção agrícola de países essenciais para o abastecimento do mercado mundial como a própria Índia, a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos da América ficaria muito abaixo do expectável, devido a um conjunto de razões onde avultam as climáticas.
Do mesmo modo, não foi previsto que a crise financeira internacional levaria os investidores a procurar refúgio não apenas nos tradicionais bens de valor garantido (designadamente o ouro) mas também nos produtos alimentares, dando origem a uma cadeia de movimentos especulativos que acrescentaram pressão sobre o aumento dos preços do arroz e dos cereais.
Por outro lado, verifica-se um desinvestimento na agricultura, que é transversal, pois verificou-se tanto nos países desenvolvidos como nos países em vias de desenvolvimento (embora com algumas excepções, como foi o caso do Mali que, graças a um plano integrado de desenvolvimento agrícola que em três anos duplicou a sua capacidade de produção de bens alimentares).
Este desinvestimento traduziu-se numa canalização de recursos e de mão-de-obra para outros sectores mais rentáveis no imediato, tendo sido acompanhado, sobretudo na Europa, por políticas de ajuda ao rendimento que não motivavam os agricultores a produzirem ou sequer a inovarem nos seus processos de produção.
Claro que o desalento da actividade agrícola nos países em desenvolvimento também corresponde à persistência de limitações à comercialização dos seus produtos por parte dos países desenvolvidos, que pretendendo proteger os seus próprios agricultores contribuíram para a inviabilização de um acordo na ronda de Doha da Organização Mundial de Comércio.
Questão mais complexa, porém, é a que tem a ver com os biocombustíveis.
As alterações climáticas e o combate às emissões de CO2 deram um forte impulso à produção de biocombustíveis, através de um conjunto de incentivos financeiros e fiscais que tornaram o uso da terra para esse fim atractivo.
Contudo, o impacto dos biocombustíveis na actual quebra de produção de cereais carece ainda de ser devidamente avaliado, por forma a evitar conclusões precipitadas. Até porque cada caso é um caso.
De facto, a União Europeia invoca em sua defesa que apenas 2% dos terrenos aráveis é que foram destinados à produção de biocombustíveis.
Por contraste, estima-se que cerca de 30% da área total de plantação de milho nos Estados Unidos esteja a ser ou venha a ser transformada em área de fornecimento de matéria-prima para os biocombustíveis.
Convenhamos que entre estes dois exemplos vai um mundo de diferença.
Acresce ainda que nem todos os terrenos são aptos para a produção de cereais, permanecendo assim em aberto uma importante margem de manobra para detalhar os limites à utilização de bens agrícolas com valência alimentar para biocombustíveis e as produções vegetais susceptíveis de terem esse destino em terrenos que, de todo o modo, teriam escassa valia para essa produção alimentar.
Há, pois, que evitar a síndrome da manta curta - a resposta para uma crise alimentar que tem muito a ver com as alterações climáticas não deve fazer esmorecer o objectivo de combater essas mesmas alterações climáticas.
Obs: Todas as semanas as reflexões de António Vitorino surpreendem pela positiva, até aborrece. Mas, goste-se ou não das suas análises, temos de reconhecer que as explicações que encontra para os problemas do mundo contemporâneo são cristalinas, sólidas e convincentes. E até se percebe que, afinal, as precocupçaões de AV são bem mais ambientalistas do que desenvolvimentistas, ou seja, o autor quer o desenvolvimento mas não a qualquer preço, porque a forma de organização da produção global - que hoje se ressente dos elevados preços dos bens alimentares - terá de tomar em linha de conta as novas fontes energéticas. Recorrer à soja não é, por enquanto, alternativa à carne porque ainda está cara. E a ideia do
Banquete gratuito de Platão parece nunca mais concretizar-se. Ou seja, o mundo está hoje obrigado a emagrecer, não porque todos decidimos fazer uma dieta voluntária, mas porque ela passou a ser imposta pelo peso das circunstâncias.
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