MORATÓRIA - por António Vitorino -
O sublinhado é nosso
MORATÓRIA
António Vitorino
jurista
As intervenções dos chefes de Estado e de Governo perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, durante o mês de Setembro de cada ano, têm muito de ritual. Mas constituem, por via de regra, uma importante ocasião para que cada país sublinhe os temas da agenda internacional a que dedica especial atenção. Dessas intervenções resultam convergências que, mais tarde, acabam por vir a desembocar em iniciativas conjuntas aprovadas pela comunidade das Nações.
A escolha do primeiro-ministro de Portugal ao abordar, na sua intervenção, os temas da Convenção Global contra o terrorismo e da abolição da pena de morte vale pela importância dos temas e também, na ocasião, por assumirmos a presidência da União Europeia neste momento.
A Convenção Global contra o terrorismo é um exemplo bem concreto da defesa que Portugal fez do multilateralismo na cena internacional. Com efeito, muitos fazem do multilateralismo não apenas uma opção de estruturação da comunidade internacional mas quase um dogma indiscutível. Ora a defesa do multilateralismo tem de ser sobretudo consequente com a obtenção de resultados efectivos, que demonstrem a sua real mais-valia na resolução das tensões e conflitos internacionais.
Decerto ninguém negará que, no momento presente e no futuro mais próximo, o tema da luta contra o terrorismo global constitui uma prioridade central. Para sermos consequentes, haverá que reconhecer que a Organização das Nações Unidas, como organização multilateral por excelência, deverá estar no centro desse combate. As actuais 13 Convenções da ONU sobre a matéria constituem uma base de acção conjunta mas o insucesso na adopção da Convenção global, proposta pela Índia, constitui uma mácula de que a Organização terá de se libertar. Sobretudo se tivermos em linha de conta que o insucesso do ano passado se ficou a dever a divergências insanáveis quanto à própria definição de terrorismo... Retomar o tema, relembrando uma promessa incumprida, com o peso da União Europeia que adoptou a sua própria definição no plano interno, constitui, pois, um incentivo para que se retomem as negociações sobre a matéria a curto prazo.
Mas se sobre o terrorismo os países da União podem apresentar-se com um curriculum comum, já o mesmo não se pode dizer do segundo tema, o da abolição da pena de morte. Com efeito, surgiram recentemente divergências com um Estado membro, a Polónia, em torno da celebração do Dia Europeu pela abolição da pena de morte, a 8 de Outubro. É bem verdade que essas divergências não versaram sobre a questão de fundo, na medida em que todos os países membros da União, Polónia incluída, são subscritores das Convenções do Conselho da Europa sobre a matéria e em nenhum deles se aplica a pena de morte.
A divergência prendeu-se sobretudo com o facto de a Polónia pretender acrescer à temática da pena de morte outros temas que suscitam diferenças profundas entre os parceiros europeus: o aborto e a eutanásia. Em boa parte esta atitude pode explicar-se pelo actual clima eleitoral que se vive naquele país. Mas a verdade é que o impasse assim criado acabou por fragilizar a posição europeia na matéria.
Mesmo assim, parece-me apropriado que, numa questão tão central dos valores civilizacionais europeus, a iniciativa portuguesa - enquanto tal e como presidência da União - não se tenha deixado ficar refém dessa divisão interna. Com efeito, cabe aos europeus uma especial responsabilidade em colocarem na agenda internacional a abolição da pena de morte e confrontar os demais parceiros com as suas responsabilidades na matéria.
Mais uma vez se testam assim os limites do multilateralismo... E se todos sabemos que não é previsível que no curto prazo se possa aspirar a uma abolição generalizada da pena de morte, já me parece de todo expectável que possa fazer o seu caminho a proposta italiana, endossada pelo primeiro-ministro português, de acordar nas Nações Unidas uma moratória na sua aplicação em concreto.
Ou não será que em muitos casos as moratórias foram a via mais segura para a queda em desuso?
Obs: António Vitorino operacionaliza a dimensão e a eficácia do conceito de multilateralismo no 1º quartel do séc. XXI - e entende que a ONU é o único fórum onde todos se cruzam com todos para fazer algo de positivo pelo mundo: uma Moratória. Tudo começa sempre por ser o sonho de alguém. E sonhar com um mundo sem pena de morte é tão útil quanto combater o terrorismo.
<< Home