sábado

Fiel e infiel - por Carlos Fiolhais -

Fiel e infiel (Publico, assin.)
27.04.2007,
Carlos Fiolhais
"Não lembraria a ninguém que se tenha de pagar menos se se for fiel e que se tenha de pagar mais se se for infiel. Descobri isso à minha custa. Ninguém na empresa de comunicações móveis de que sou cliente (ou melhor, era) me havia informado que eu tinha de lhe ser fiel durante um tempo (vá lá que não era para sempre, na saúde e na doença, até que a morte nos separasse), quando me deram um contrato para assinar. Devia estar em letras miudinhas, muito miudinhas. Mas eu, mesmo sem saber da obrigação jurídica, vivi na maior fidelidade até ter avariado uma peça de hardware. Aí disseram-me que tinha de fazer um novo contrato, mas - azar meu - tinha de me manter fiel ao primeiro pelo prazo estabelecido, isto é, tinha, apesar de não usufruir do serviço, de respeitar o compromisso de fidelidade. Não gostei de saber. Eu queria mesmo ser fiel àquela empresa, que me tinha assegurado fartas e boas comunicações durante largos anos. Mas só pagando um contrato e não dois. E não percebia bem porque é que tinha de fazer segunda fidelização se já tinha a primeira, ou, em alternativa, porque é que tinha de fazer um contrato, mais caro, de infiel, quando tinha um outro, mais barato, de fiel. Seria, de resto, uma situação bastante caricata ser fiel e infiel ao mesmo tempo e logo à mesma pessoa, quero dizer empresa. Seria como o gato de Schroedinger, meio morto e meio vivo... Expliquei o evidente paradoxo à senhora que me atendeu no centro das telecomunicações nacionais que fica nas Picoas, em Lisboa. Mas ela não estava interessada na lógica, ou melhor, a lógica da empresa devia ser quântica, enquanto eu queria uma lógica clássica. E, megarrápida, começou a tratar-me por "senhor Carlos". Também não gostei de ser assim tratado. Porque ou ela tinha suficiente intimidade comigo e me tratava pelo primeiro nome ou então não tinha e teria de acrescentar ao "senhor" o meu nome de família. A última pessoa que me tinha tratado por "senhor Carlos" tinha sido uma enfermeira com uma seringa na mão e, dessa vez, dadas as circunstâncias, não reagi. Mas nas Picoas fiquei picado, até porque não me lembrava de o doutor Lindley Cintra ter incluída essa entre as formas de maior cortesia que constam do seu livro Sobre "Formas de Tratamento" na Língua Portuguesa. Devia ser uma forma de tratamento moderna, ministrada nos cursos rápidos de formação dos operadores (no caso, dizer que houve um curso rápido é muito favorável, pois suspeito de que não deve ter havido curso nenhum).Não, não havia ninguém acima na hierarquia para falar com o fiel cliente. O cliente naquele sítio não só não tinha razão como nunca teria razão (the client is always right é uma expressão inglesa, a qual, eu já devia saber, não tem tradução em português). Eu tinha mesmo de continuar a ser fiel e era assunto arrumado. A empresa não gostava obviamente de mim, mas queria-me preso a ela. Senti-me, salvo seja, trancado numa prisão. E, como todo o prisioneiro aspira à liberdade, tomei a súbita resolução de fugir. Ir-me embora para outra. Quando um cliente não tem razão num lado, espera tê-la noutro. Na pressa de me evadir, nem sequer contemplei a hipótese de todas as empresas de telecomunicações terem contratos de fidelidade escritos em letras minúsculas e de todas elas me tratarem por "senhor Carlos". Mas, antes de escapar, ainda dei uma chance à minha fiel companheira de tantas chamadas durante anos a fio (ou, se me é permitido o trocadilho, durante anos sem fio). Se fizesse o favor, importava-se de comunicar comigo se acaso houvesse alguma reconsideração? Assim que saí, com a sofreguidão da infidelidade, à procura de outra, soou o "bip" das mensagens. Era a minha ex-empresa, à qual eu tinha de ser fiel, e a esperança renasceu. Mas ela, em vez de me dar razão e me querer de volta, queria apenas vender-me bilhetes para um concerto rock, com um desconto por ter acumulado não sei quantos pontos. Que pena estar já tudo acabado entre nós!"
Professor universitário
(tcarlos@teor.fis.uc.pt)
Já agora fica aqui o site deste cientista de mérito e de renome internacional.
Foi uma pena o Carlos Fiolhais não ter titulado em letras garrafais essa operadora, que fica em Picoas, assim ficaríamos todos mais e melhor prevenidos, e como a lei dos grandes números rápidamente se converte em força de marketing - talvez assim a operadora em questão, doravante, pensasse duas vezes em querer ter relações estranhas com os clientes depois de os ter "aprisionado" durante anos e, para agravar as coisas, pretender que os clientes se deitem para a estrutura accionista continuar a passar com o rolo compressor através dos milhões de euros que faz de lucros por ano. Foi uma pena Carlos Fiolhais, mas pondere, pois ainda vai a tempo... É que se essa operadora perder clientes, também perde dinheiro, e perdendo ambas as coisas pode alterar a regra que obriga a essa relação esquizofrénica que acabou de narrar com graça.
Se os clientes se organizarem em rede (denunciando esse tipo de situações), e estou eu a explicitar isto a um cientista (que curioso!!) as empresas dobram-se, são chamadas à pedra no sítio onde lhe dói mais: nos lucros (cessantes). Depois até pedem desculpa aos clientes, e algumas até lhes oferecem um Tm novo de gama alta com um pacote integrado de créditos para falar e falar e falar e falar...