Retrato em Movimento - por Herberto Helder -
HERBERTO HELDER*,
in "Retrato em Movimento", 1967
O mês de Março vem ver como é e toca em tudo, e as montanhas
descem pela tarde íngreme, nos espelhos tu serás daqui em diante todo
o meu braço esquerdo, porque eu vou levantar voo com o braço direito
na camisa demasiado azul, meu amor a espuma é uma pressa das águas
que chegam à alvorada, nascidas num centro nocturno onde os animais
estremecem e dormem — nunca mais terei sono, vou despir-te tão lenta-
mente quanto se tece uma estação, e arderá nos meus dedos uma doçura
negra, só depois eu saberei como é leve toda essa roupa exaltada, na
atmosfera que treme dás um passo com os teus cabelos, e a paisagem
ergue-se e respira, com a cor toda na voz procuro o nosso silêncio, como
tu és uma criança passa a sombra do vento, e passa porque estás nua
uma vertigem de sal, e ouve: o teu país é pimenta, e então é a noite pin-
tada ao fundo e a lua senta-se, meu amor como um cardume livremente
branco, e olhar é um modo de crescer em silêncio, respiras elevada até
ser teu corpo um grande pensamento, e tudo se cala para termos muitas
mãos por onde compreender, o mês de Março está no meio e não se
move, sentimos apenas os seus pulmões ardentes na matéria delicada
que ferve atrás dos séculos.
* Herberto Hélder (n. 1930)
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