domingo

Semi-soberanos - por António Costa Pinto -

António Costa Pinto
Professor universitário
Há mais de 40 anos, um estudioso da democracia norte-americana cunhou a expressão "povo semi-soberano" para descrever o escasso controlo que os cidadãos tinham sobre as decisões políticas, aparentemente por culpa deles. A situação piorou entretanto, levando um politólogo europeu, Peter Mair, a avançar a ideia de "povo não soberano", para descrever, mais do que a hostilidade, a indiferença dos cidadãos perante as suas instituições democráticas. A abstenção é a face mais evidente desta moeda e, nesta perspectiva, os resultados do referendo da semana passada não só salvaram este instrumento complementar da democracia representativa como até foram interpretados por muitos como um passo decisivo para a modernidade.
Apesar da diversidade de opiniões sobre os factores da abstenção em consultas sobre estes temas, a verdade é que, se a participação ficasse na área dos 30%, era caso para dizer que estávamos perante um abismo elite-massas pouco saudável e que os partidos de pouco servem para colmatar este défice. Apesar de não termos instrumentos rigorosos para o provar, é de admitir que, desta vez, a mobilização dos partidos, o dar a cara do primeiro-ministro e a concertação moderada do "sim" foram as molas da vitória.
A análise do factor modernidade é mais complexa. Primeiro, porque não é de crer que os valores da sociedade portuguesa tenham mudado muito em nove anos. Se calhar já lá estavam em 1998 e não foram a votos. O impacto mediático da criminalização das mulheres também deve ter tido o seu papel, mas a verdade é que o relativo progresso da individualização e autonomia da relação com a religião católica, enquanto instituição, tem avançado suavemente. Aquele estereótipo dado pela imprensa internacional, do Portugal católico fervoroso, já está desactualizado há bastantes anos.
Feitas as contas, este referendo foi positivo a muitos níveis. Para as mulheres portuguesas que ganharam um direito nas urnas e não por decreto (eu sei que não se utilizou a palavra, mas acreditem que é). Para uma boa parte das elites, que se confortam com a ideia de modernidade. O eng. Sócrates, apesar do seu tom de "vitória contra ninguém", ganhou à esquerda nos valores o que lhe vai tirar já a seguir nos direitos sociais, que o Governo não consegue pagar. E por fim o princípio do referendo, que estava a caminho de ser símbolo de um "povo não soberano".
Obs: É das melhores sínteses sobre os resultados deste referendo ao aborto que já li. Uma abordagem politológica bem escrita e melhor pensada. Creio, contudo, que o conceito de - "povo não soberano" - aqui eficientemente utilizado, deve ser invertido pela população lisboeta para pôr cobro à situação caótica que se vive hoje na maior autarquia do País. E, porque não (!!) aproveitar esta onda participativa do referendo (não obstante a abstenção), para reforçar os laços da cidadania entre os portugueses nas demais matérias de interesse público.
O sublinhado é nosso.