terça-feira

'Pornopolítica' - por J. M. Barroso -

'Pornopolítica' José Manuel Barroso
Jornalista
Arnaldo Jabor esteve em Lisboa há umas semanas, numa conferência sobre a realidade brasileira, mas quase ninguém dos media lhe ligou. Jabor é um homem de cultura, ensaísta, ficcionista e jornalista, cuja palavra é como um bisturi na carne do Brasil contemporâneo. Passou por todas as etapas do homem da geração do final dos anos 50, da geração que quis mudar o mundo. Viveu as utopias, militou nas fileiras dos grupos de salvação do anticapitalismo - sempre com seu olho crítico e seu óculo de captação da realidade mais profunda ou distante. Até chegar à lágrima do desencanto.
Hoje, sem se converter ao capitalismo ou a essa coisa de moda do neoliberalismo, revela--se cada dia mais como autor corajoso. Seu último livro (Pornopolítica, Taras e Paixões na Vida Brasileira), resenha de crónicas publicadas na imprensa, é o somatório de pequenos grandes espelhos da realidade social.
Pornopolítica é um dos mais vendidos livros, desde há muitas semanas, no Brasil. Comprei-o num supermercado de bairro, em S. Paulo, devorei-o numa noite de hotel, desejei que ele pudesse ser também best-seller em Portugal. Por isso, peço licença ao Jabor para me utilizar de alguns dos seus textos nesta crónica de hoje.
Primeiro andamento, o mistério das mulheres. "As mulheres são sempre várias. Isso não as faz móbiles, nem traidoras; nós é que nos achamos 'unos'. A mulher não é um enigma. Nós é que somos, nós é que achamos que há clareza. Os homens são mais óbvios, fálicos. Homem é ciência. Mulher é arte. Homem tem um 'fim'. Mulher abre-se num horizonte com muitos sentidos e está sempre equivocando o homem. O maior mistério do mundo é a diferença entre sexos. Talvez o único mistério. Por mais que queiramos nunca chegaremos lá. Lá onde? Lá onde mora o outro, a diferença."
Segundo andamento, o amor de mercado. O futebolista Ronaldo e a modelo Daniella Cicarelli. "Sempre tive inveja de Ronaldinho. Não só dele, com seus dentinhos separados e os cem milhões de dólares, beijado por multidões. Invejo também Cicarelli pelo mistério feminino, por sua luz de ninfa, que eu, homem, nunca entenderei. O problema de Daniella é a perfeição. (...) Fiquei desiludido com o casamento. Tive uma decepção romântica. Esperava que fossem felizes para sempre. Mas devo confessar que desde o início esse romance me incomodava. (...) Ele que já tinha papado as mais belas mulheres do país, todas brancas, claro, quis transformá-la numa nova Cinderela. Só que talvez a Cinderela fosse ele, casando com a princesa, ele um ex-pobre e mulato claro. Esse romance sempre me pareceu uma 'bandeira' viva do Brasil de hoje: narcísico e romântico, liberal e racista, democrático na mídea, mas excludente na vida real. Ronaldinho é um fenómeno, mas é de origem pobre que subiu na vida. Como um Lula. (...) Aí, veio o casamento, no castelo de Chantilly. (...) Depois, chegou o cotidiano e os dois se encontraram sem identidade. Quem somos nós? Que fazemos aqui se não nos conhecemos? (...) E não foram felizes para sempre."
Terceiro andamento, os novos homens- -bomba. "'Você é do PCC?' Mais do que isso, eu sou um sinal dos novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo. 'Mas... a solução seria...?' Solução? Não há mais solução... A própria ideia de 'solução' já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de S. Paulo? Solução como? Só viria com muitos biliões de dólares, gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento económico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma 'tirania esclarecida', que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do legislativo cúmplice (ou você acha que os 267 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...). Ou seja: é impossível. Não há solução. 'E não têm medo de morrer?' Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia, vocês não podem entrar e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba."
Quarto andamento, miséria e política. "A miséria era o grande capital do Governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC [Fernando Henrique Cardoso] ou os tucanos [o PSDB] quiseram cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado. Mas a miséria tem sido ingrata com o PT. Ela se recusa a comer do Fome Zero, ela desmoraliza a eficiência do Bolsa Família. O erro dos que desejam acabar com a miséria é achar que ela está 'do lado de fora' de nossa vida, do 'lado de fora' dos aparelhos de Estado, de nossa vida social. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro. A burocracia é miséria, corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria mental já invadiu a Câmara dos Deputados. A miséria não está na periferia e favelas; está no centro de nossa vida brasileira. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados."
Pornopolítica: um livro fantástico.