domingo

Marcelo, peanuts e a Globalização Infeliz, again...

O douto Marcelo está imparável na sua crónica domingueira, pois além de chamar azelha várias vezes ao ministro da Saúde, repetindo-se patológicamente denunciando que o louco é ele - nas ajudinhas matreiras que dá ao defunto MMendes, referiu que Ribeiro e Castro é um bonzo da planície porque foi um dos que teve a coragem de pedir eleições intercalares na CML.
Bom, sabendo-se antecipadamente que quem defende essas eleições intercalares nada ganha com o "negócio" em Lisboa, segundo Marcelo, tal como também defende Sá Fernandes do BE, é lógico concluir que para o dito Marcelo só faz política com nobreza os partidos que cínica e hipócritamente empurram a situação podre da autarquia com a barriga para frente e não solicitam as necessárias eleições.
Este Marcelo é mesmo um "tratado", por vezes não sei se ele fala e se enterra, ou se se enterra e fala depois. O que é facto é que na actual situação política em Lisboa, que prefigura corrupção e incompetência da grossa, o douto Marcelo deveria ter alguma vergonha naquela cara de pau e defender, também ele, eleições intercalares.
Ou será que ele faz aquelas cróniquetas a meias na S. Caetano de braço-dado com MMendes ou só assume a tonalidade da nobreza na política em matéria de aborto??... Temo bem que sim!!
Falando agora de coisas mais sérias: a globalização infeliz. Um texto antigo hoje republicado, nem que seja para contrastar com a superficialidade patogénica de Marcelo quando apelida os outros de loucos e azelhas e ele nem sequer chegou a ministro, um dos seus grandes traumas. Mesmo em relação ao Paulinho das feiras...
A globalização infeliz, again...
Há dias reencontrei uma pessoa rica em valores simples. Um autodidacta que passou para o outro lado da vida: a marginalidade. Errante, transformou-se num filósofo de arcada. Comia, dormia e pensava nas traseiras do prédio onde habitava. Íntimo do álcool, dos plásticos onde guardava restos de comida oferecida e dos trapos velhos, emitia o seu saber sobre tudo. Adormecia com os gatos e acordava com os pombos que alimentava. Confundia-se com os animais. Durante anos teve residência fixa na mesma arcada donde o avistava da janela de minha casa. E era dela que agendava briefings com o filósofo. Resultado: ficámos amigos.
Um dia perguntei-lhe o que desejaria ter sido em termos profissionais. Retorquiu o seguinte: “só queria o dinheiro para comprar a morte e, assim, viver eternamente; “depois compraria um aquário gigante, mas enchia-o de vinho e punha-me lá dentro a nadar como um peixe”. Quando regressei à realidade, constatei que as pessoas ditas normais, diziam coisas diferentes: “Estou a passar por um mau momento”; “este é um período diferente”.
Mas depressa me apercebi de que esses períodos difíceis ocorriam com uma frequência cada vez maior; tornaram-se uma característica permanente da vida dessas pessoas. Contudo, alguns amigos diziam-me, “isto está difícil, é o mês de Agosto; a Primavera é sempre uma altura má”, etc. Interessei-me pelo fenómeno. Cedo descobri que se tratava de gente madura e com talento. Muitos tinham carreira na administração pública, editores, engenheiros, cientistas, executivos, professores e outros liberais. Viviam em boas casas, tinham carros de alta cilindrada, e até barcos e veraneavam várias vezes ao ano.
Na prática, todos elas reconheceram estarem a viver melhor do que dantes, a ganhar mais dinheiro, a viver em casas maiores, a ter carros mais potentes, usar roupas de marca. Porém, quase sem excepção, estavam todas numa “fase difícil”. Foi só ao fim de algum tempo que associei a abundância da nossa sociedade ao facto de essas pessoas se sentirem cada vez mais infelizes. Erguia-se diante mim uma tremenda contradição.
Resolvi então marcar novo briefing e lá fui para a arcada debater as questões do nosso tempo com o meu amigo filósofo de rua. Ante a contradição, deu-me algumas explicações que exprimiu sob a forma interrogativa. Qual é a sensação de pobreza? Que sofrimento psicológico a acompanha?. Acrescentou que a pobreza sempre andou associada com o medo e a ansiedade acerca do futuro, o medo do abandono (como lhe sucedera com a família), o medo do perigo físico por dormir ao relento, o medo do assalto constante, o medo da solidão. O álcool ajudava a criar essa fronteira de segurança ilusória e manter a temperatura do corpo.
Era assim que este amigo via os seus semelhantes: “os pobres eram gente encurralada, tensa, ardilosa, rude, sem esperança, consumida por fantasias, drogas e venenos que lhes destruíam os corpos sem evasão possível”. Dizia-me: “vejo-me a viver e a morrer como um animal. As nossas vidas são a própria imagem do Inferno. Férias, lazer, reforma, família, divertimento – tudo isso desapareceu. O tempo já não nos pertence. A moeda do tempo depreciou-se e degradou-se tanto que desapareceu”.
Dizia que tudo isso sucede por causa da globalização (in)feliz, da complexidade e da evolução sem controlo das sociedades. A reunião da OMC em Cancún para a liberalização do comércio mundial, reflecte essa desigualdade falseando o jogo da concorrência, agravada com os imorais subsídios que os países ricos dão aos seus produtores, barrando o acesso aos países pobres.
É essa incerteza, como a vida dos pobres, que alimenta o actual debate político (encobrindo interesses) mas também apurando a teoria dos sistemas complexos dinamizada pelos múltiplos actores e relações que modernizam as sociedades e as desenvolvem (sem controlo).
Confesso que aprendi mais sobre teoria da globalização na arcada do prédio de Benfica do que anos na academia ou nas conferências da Gulbenkian. Em lugar do controlo voluntarista da política, o que se deve identificar é um processo de co-evolução, onde as inter-relações entre um grande número de agentes são mais determinantes do que as decisões emanadas do poder político ou do poder económico. Globalização, para este filósofo de arcada, é planificação sem controlo. A esta luz, o desenvolvimento das redes digitais e os canais de mobilidade dos factores produtivos e das mercadorias e serviços, não foram planificados por ninguém, resultaram do funcionamento do sistema no seu conjunto.
Para o Zé Carlos, a quem dedico este texto, a globalização é uma soma de contingências, um contexto de risco e incerteza. O desequilíbrio biológico pode ser-lhe fatal, mas não tem de o ser para a espécie, cuja mudança lhe permitirá a adaptação a novas condições de vida. Dramático para mim não é saber que o Zé Carlos não vê TV nem lê jornais, mas que continua a dormir ao relento e os políticos não perdem o sono em boas casas. Um sono que é “um monstro apoiado em muletas” como explicou Freud e desenhou Dalí…
PS: Texto dedicado a Albert Cossery.