Virtude democrática - por António Vitorino -
- O sublinhado é nosso.
Mais uma reflexão lúcida, desta vez repleta de hermenêutica em que António Vitorino a pretexto do discurso do PR ressaltou as virtudes deste nosso sistema semipresidencialista. É, de facto, muito vantajoso ver como é que há - ainda - políticos que conseguem ser analistas - apesar da maioria dos analistas não conseguir segurar essa fronteira. Embora, como diria, Weber, a neutralidade absoluta também não exista.
Dito isto, como diria o outro, é vantajoso que hoje em Portugal o PR seja Cavaco e o PM seja Sócrates, porque se naquele lugar estivesse Soares os riscos de confusão de competências, pela natureza das personalidades envolvidas, aumentariam consideravelmente. Nesse caso, creio, a cooperação estratégica que hoje existe entre Cavaco e Sócrates seria uma ilusão à vista. Daí a vantagem de cada qual saber exactamente o que tem a fazer no sistema político, os riscos de se atropelarem é diminuto.
Ou seja, há, assim, poucas possibilidades de existir um conflito de competências entre ambos. E até o problema das finanças públicas nacionais só se resolve se os dois cooperarem, e muitos óbices do passado entre Belém (Mário Soares) e S. Bento (Cavaco) irrompiam na cena política porque, precisamente, Soares tinha uma dificuldade técnica em compreender essas questões que se colocavam à gestão política da governação, daí as farpas que então se lançavam a S. Bento a partir do Palácio Rosa - que depois Cavaco reagia com as forças do bloqueio, mormente quando o Tribunal de Contas também dificultava as coisas ao Executivo então liderado pelo actual PR. Ainda assim, Mário Soares desempenhou dois mandatos, e ainda queria um terceiro... Aqui, admirável é a sua longevidade.
O homem ainda há-de chegar aos 100 anos - como Manoel de Oliveira - e a desejar fazer rombos na cena política. Contudo, o papel de Cavaco é sempre o de regulador do sistema político, dado que ele pode fixar a agenda, dinamizá-la e imprimir uma orientação política forte num dado sentido. E aqui o governo segui-lo-á ou não. Pode ainda tentar passar por "entre"...
Ideal será quando ambos formatam esse barro da política portuguesa sem que nenhum se suje ou o molde saía defeituoso. Embora todo este equilíbrio precário dependa da capacidade do PR para colocar questões pertinentes e de o governo acompanhar e enriquecer essas questões com propostas de solução - em tempo real. Nesta linha, PR e PM estão mesmo "condenadaos" a entenderem-se porque essa é a natureza do regime semipresidencialista que o legislador quis aprovar.
Apesar de aí também poder haver inúmeras nuances dada a flexibilidade do sistema semi-presidencial. Mas tudo, claro, dependerá do entendimento dos homens, do seu carácter e carisma e da legitimidade que um e outro vejam ratificadas pelas decisões diárias que tomam ante o olho clínico dos eleitorados.
Creio que o pior que poderia suceder entre Cavaco e Socas, Belém e S. Bento seria que um desconhecesse os limites de interpretação do outro acerca do funcionamento do sistema político, de tal forma que para ilustrar essa deriva de degradação em contexto democrático - que só muito dificilmente acontecerá entre estas duas fortes personalidades que gozam de legitimidades igualmente fortes, - recorremos aqui a William Shakespeare para tentar demonstrar aquilo que jamais deverá suceder em Portugal:
- Hamlet - Vês aquela nuvem que tem quase a forma de um camelo?
- Polónio - Santo Deus, parece mesmo um camelo!
- Hamlet - Acho que parece uma doninha.
- Polónio - Tem o dorso de uma doninha.
- Hamlet - Ou uma baleia?
- Polónio - É mesmo uma baleia.
(Hamlet, III, 2)
Dito doutro modo: ninguém hoje estará a ver Sócrates a fazer de Hamlet nem Cavaco a representar Polónio ou vice-versa. Mas, como sabemos, em democracia tudo é possível... E, como dizia Marcello Cateano, em política tudo é possível menos transformar um homem em mulher... Já não viveu o tempo suficiente para perceber o quanto estava (já) desactualizado.
E já bem perto de nós, um dos players hoje de serviço na Europa, conseguiu fazer com que numa democracia pluralista o poder fosse transmitido monárquicamente a sLopes - ante a cumplicidade paralisante de Belém que o empossou - para uns meses depois o demitir. Quando me lembro disto, não como uma representação mental mas como uma realidade política fáctica, ainda penso que "andamos todos por aí... antes de chegar aqui."
Tudo isto decorre com uma agravante para a vida dos agentes políticos, sociais e económicos: hoje a vida de todos nós "joga-se" duma forma excessivamente insegura e imprevisível. Da mesma forma que as pessoas hoje cedem à preguiça em resposta ao stress causado por agendas cada vez mais inflamadas e estéreis.
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