sexta-feira

Virtude democrática - por António Vitorino -

Virtude democrática (Link)
António Vitorino
Jurista
A mensagem de Ano Novo do Presidente da República foi glosada em quase todos os andamentos possíveis, naquilo que nela se contém e naquilo que se pretendeu ler nas entrelinhas. De certa forma esta exegese do pensamento do Presidente é um ónus de se tratar do único órgão de soberania unipessoal.
Num sistema de governo semipresidencial, fora os casos-limite onde o Presidente intervém em situação de crise, a regra da intervenção presidencial é a sua natureza pendular. Nessas intervenções se contêm elementos com maior ressonância nos quadrantes próximos do poder constituído e outras que calam mais fundo nos que se lhe opõem, do todo resultando o traço de união que os portugueses vêem na função presidencial e, naturalmente, a específica interpretação do Presidente da República acerca da sua função institucional no nosso sistema democrático.
Quando o Presidente Jorge Sampaio disse que havia mais vida para além do Orçamento, os críticos da dr.ª Manuela Ferreira Leite rejubilaram. Contudo, não consta que o Presidente Sampaio tenha recusado qualquer das medidas (e algumas bem controversas eram...) que a então ministra das Finanças apresentou para fazer face à situação do País.
Desta feita, o Presidente Cavaco Silva apelou à concertação do Governo com os órgãos das regiões autónomas e com os interlocutores nos diferentes sectores da sociedade. Logo houve quem quisesse ver aqui um sinal de distanciamento em relação ao estilo assertivo do primeiro-ministro e do Governo. Contudo, não consta que o Presidente se tenha atravessado no caminho do Governo em relação à reforma das finanças regionais (o principal ponto de conflito com o Governo Regional da Madeira) e até acaba de promulgar o Estatuto da Carreira Docente, sem dúvida o diploma legislativo do Governo que, nos tempos mais recentes, se defrontou com uma oposição mais acesa.
É verdade que suscitou a fiscalização preventiva da constitucionalidade da Lei das Finanças Locais e que, uma vez proferido o acórdão do Tribunal Constitucional que não se pronunciou pela inconstitucionalidade, promulgou a lei em causa que foi alvo de contestação da parte dos autarcas inclusive de vários quadrantes políticos. Mas falemos com objectividade: a questão de constitucionalidade que o Presidente colocou ao tribunal neste caso era, sem dúvida, relevante na perspectiva da função do sistema fiscal nacional (do imposto sobre os rendimentos das pessoas) mas, no fundo, totalmente irrelevante quanto aos fundamentos da contestação aduzidos pelos autarcas e em especial pela Associação Nacional de Municípios. Quanto a estes, o Presidente nada disse e, sob o manto diáfano da pronúncia do Tribunal Constitucional, promulgou a lei viabilizando assim as pretensões da reforma.
Não sei se estes exemplos cabem na chamada "cooperação estratégica". Nem pretendo desvalorizar a magistratura de influência que o actual Presidente, à semelhança dos seus antecessores, decerto exerce nas reuniões semanais com o primeiro-ministro. Mas, em termos de acções, em todos estes casos, o Governo não pode queixar-se de falta de solidariedade institucional da parte do Presidente da República.
Contudo, a mensagem de Ano Novo contém um senão. Com efeito, a exigência de resultados significativos em 2007, decorrentes das reformas em curso de aplicação, não se pode ter sequer por abusiva: quem empreende uma via reformista aceita, sem reservas, ser julgado pelos resultados, que é o corolário da sua própria acção estratégica. De igual modo, a escolha pelo Presidente dos sectores da justiça, da educação e da evolução económica mostra-se consonante com as prioridades do próprio Governo.
Quando o Presidente não densifica o que entende por "resultados significativos" ainda está, em meu entender legitimamente, a salvaguardar a sua autonomia própria e a sua liberdade de avaliação como árbitro do sistema político. Este distanciamento é inerente à natureza do sistema semipresidencial de governo e como tal deve ser entendido com naturalidade por parte do Governo.
Mas o senão reside no facto de esta exigência não qualificada de resultados significativos poder vir a ser interpretada como o Presidente considerando que o tempo dos sacrifícios está ultrapassado e que terá chegado a hora de colher os benefícios do que já se penou. Ora, os problemas de fundo com que o País se defronta (inclusive nos sectores escolhidos pelo Chefe do Estado) são tão profundos e enraizados ao longo de décadas que a sua superação não se compadece com uma ideia de facilitismo ou de que o ponto de viragem... está ao virar da esquina!
É que, à semelhança do que sucedeu noutros países que tiveram de fazer ajustamentos profundos como aqueles com que estamos confrontados, reformas para obter resultados de curto prazo acabam por deixar intactos problemas de fundo. Aos titulares dos cargos políticos pede-se, pois, um esforço de pedagogia, demonstrando que a paciência também pode ser uma virtude democrática!
  • O sublinhado é nosso.
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Mais uma reflexão lúcida, desta vez repleta de hermenêutica em que António Vitorino a pretexto do discurso do PR ressaltou as virtudes deste nosso sistema semipresidencialista. É, de facto, muito vantajoso ver como é que há - ainda - políticos que conseguem ser analistas - apesar da maioria dos analistas não conseguir segurar essa fronteira. Embora, como diria, Weber, a neutralidade absoluta também não exista.

Dito isto, como diria o outro, é vantajoso que hoje em Portugal o PR seja Cavaco e o PM seja Sócrates, porque se naquele lugar estivesse Soares os riscos de confusão de competências, pela natureza das personalidades envolvidas, aumentariam consideravelmente. Nesse caso, creio, a cooperação estratégica que hoje existe entre Cavaco e Sócrates seria uma ilusão à vista. Daí a vantagem de cada qual saber exactamente o que tem a fazer no sistema político, os riscos de se atropelarem é diminuto.

Ou seja, há, assim, poucas possibilidades de existir um conflito de competências entre ambos. E até o problema das finanças públicas nacionais só se resolve se os dois cooperarem, e muitos óbices do passado entre Belém (Mário Soares) e S. Bento (Cavaco) irrompiam na cena política porque, precisamente, Soares tinha uma dificuldade técnica em compreender essas questões que se colocavam à gestão política da governação, daí as farpas que então se lançavam a S. Bento a partir do Palácio Rosa - que depois Cavaco reagia com as forças do bloqueio, mormente quando o Tribunal de Contas também dificultava as coisas ao Executivo então liderado pelo actual PR. Ainda assim, Mário Soares desempenhou dois mandatos, e ainda queria um terceiro... Aqui, admirável é a sua longevidade.

O homem ainda há-de chegar aos 100 anos - como Manoel de Oliveira - e a desejar fazer rombos na cena política. Contudo, o papel de Cavaco é sempre o de regulador do sistema político, dado que ele pode fixar a agenda, dinamizá-la e imprimir uma orientação política forte num dado sentido. E aqui o governo segui-lo-á ou não. Pode ainda tentar passar por "entre"...

Ideal será quando ambos formatam esse barro da política portuguesa sem que nenhum se suje ou o molde saía defeituoso. Embora todo este equilíbrio precário dependa da capacidade do PR para colocar questões pertinentes e de o governo acompanhar e enriquecer essas questões com propostas de solução - em tempo real. Nesta linha, PR e PM estão mesmo "condenadaos" a entenderem-se porque essa é a natureza do regime semipresidencialista que o legislador quis aprovar.

Apesar de aí também poder haver inúmeras nuances dada a flexibilidade do sistema semi-presidencial. Mas tudo, claro, dependerá do entendimento dos homens, do seu carácter e carisma e da legitimidade que um e outro vejam ratificadas pelas decisões diárias que tomam ante o olho clínico dos eleitorados.

Creio que o pior que poderia suceder entre Cavaco e Socas, Belém e S. Bento seria que um desconhecesse os limites de interpretação do outro acerca do funcionamento do sistema político, de tal forma que para ilustrar essa deriva de degradação em contexto democrático - que só muito dificilmente acontecerá entre estas duas fortes personalidades que gozam de legitimidades igualmente fortes, - recorremos aqui a William Shakespeare para tentar demonstrar aquilo que jamais deverá suceder em Portugal:

- Hamlet - Vês aquela nuvem que tem quase a forma de um camelo?

- Polónio - Santo Deus, parece mesmo um camelo!

- Hamlet - Acho que parece uma doninha.

- Polónio - Tem o dorso de uma doninha.

- Hamlet - Ou uma baleia?

- Polónio - É mesmo uma baleia.

(Hamlet, III, 2)

Dito doutro modo: ninguém hoje estará a ver Sócrates a fazer de Hamlet nem Cavaco a representar Polónio ou vice-versa. Mas, como sabemos, em democracia tudo é possível... E, como dizia Marcello Cateano, em política tudo é possível menos transformar um homem em mulher... Já não viveu o tempo suficiente para perceber o quanto estava (já) desactualizado.

E já bem perto de nós, um dos players hoje de serviço na Europa, conseguiu fazer com que numa democracia pluralista o poder fosse transmitido monárquicamente a sLopes - ante a cumplicidade paralisante de Belém que o empossou - para uns meses depois o demitir. Quando me lembro disto, não como uma representação mental mas como uma realidade política fáctica, ainda penso que "andamos todos por aí... antes de chegar aqui."

Tudo isto decorre com uma agravante para a vida dos agentes políticos, sociais e económicos: hoje a vida de todos nós "joga-se" duma forma excessivamente insegura e imprevisível. Da mesma forma que as pessoas hoje cedem à preguiça em resposta ao stress causado por agendas cada vez mais inflamadas e estéreis.