sexta-feira

Estaca zero - por António Vitorino -

Estaca zero

António Vitorino

Jurista

Na vizinha Espanha o ano de 2007 começou da pior forma, com um novo atentado do grupo terrorista basco ETA usando uma bomba potente que destruiu um parque de estacionamento do Aeroporto de Barajas e provocou duas vítimas mortais. Este acto bárbaro marca o fim do "cessar-fogo permanente" que havia sido decretado unilateralmente pelos terroristas em Março de 2004 e representa um retrocesso, provavelmente de vários anos, na tentativa de encontrar uma solução política para a ameaça do terrorismo basco.
Este atentado constitui, sem sombra de dúvida, uma pesada derrota para o Governo espanhol, que havia criado a expectativa de encontrar a curto prazo uma tal solução política. Não deixa, contudo, de ser curioso que alguns comentadores portugueses, no seu afã de zurzir tudo o que tem o rótulo socialista, se apressem a responsabilizar o Governo espanhol pelo atentado, numa retórica de banalização do terrorismo como quem diz que de terroristas só se pode esperar... mais terrorismo!
Sabemos todos que num Estado de direito democrático a luta contra a barbárie terrorista exige um difícil equilíbrio entre o uso dos instrumentos repressivos disponíveis (polícias, tribunais, serviços de informações, cooperação transfronteiriça e acções de investigação conjuntas entre vários Estados) e a utilização de armas de acção política que isolem os terroristas e permitam criar um horizonte de estabilização e paz cívica. Alguns dos críticos lusos de Zapatero eximem-se a assumir opinião sobre a definição deste ponto de equilíbrio e para o efeito esquecem convenientemente o caso irlandês, também ele sujeito a avanços e recuos, progressos no diálogo e retrocessos violentos e sangrentos, até ao momento em que foi possível encontrar uma solução aceite pela maioria dos protagonistas dos dois lados da contenda.
É bem verdade que havendo semelhanças entre a ETA basca e o IRA irlandês - como grupos terroristas de base territorial e reivindicações emancipalistas - há, entre eles, bastantes diferenças. Uma delas, aliás relevante, decorre do facto de o IRA tradicional ser bastante sensível às pressões políticas (e logísticas...) vindas de certas comunidades irlandesas do outro lado do Atlântico e de a ETA, neste ponto, ser um grupo terrorista essencialmente paroquial, muito mais autocentrado no País Basco espanhol e por isso menos permeável a pressões internacionais.
Por outro lado, tal como o IRA, a ETA é uma organização terrorista dividida em facções, que por facilidade de expressão se designam por "radicais" e "partidários da negociação". No caso do IRA, os sucessos da acção policial e judicial das forças da ordem e uma colaboração mais decidida da República da Irlanda e do próprio senador americano George Mitchell permitiram, na relação de forças interna ao IRA, reforçar os segundos em detrimento dos primeiros.
Ora, no caso da ETA, a relação de forças interna nos últimos meses orientou-se no sentido da perda de influência dos partidários da negociação, que haviam estado na base do denominado "cessar-fogo permanente". Tal alteração resultou em parte da postura do Governo espanhol de abertura ao diálogo não contemplar à partida concessões políticas (designadamente no que dizia respeito à relegalização do Batasuna e de organizações pró-ETA da sociedade civil basca ou à revisão das condições de detenção dos terroristas presos), mas também em parte da ascensão, dentro da ETA, da corrente radical que se alimenta da kalle borroka, da agitação de rua que provoca a desordem e a destruição de bens públicos e privados, muito próxima de uma actividade delinquente pura. Esta ascensão acabou por tornar mais delicada a posição dos "moderados" e abrir espaço para a retoma dos actos terroristas, aniquilando assim o espaço de abertura criado em Março de 2005 com o "cessar-fogo permanente".
A ofensiva policial e judicial levada a cabo nos anos de 2001 a 2005 enfraquecera a capacidade operacional da ETA, apertara o cerco às suas bases logísticas (sobretudo em França), dificultara o encontrar de "santuários" para os terroristas recuados em outros países europeus (incluindo Portugal...) e, nesse plano, o "cessar-fogo permanente" unilateralmente declarado criou ao Governo espanhol uma situação de força para admitir o diálogo sem concessões políticas à cabeça. Este novo atentado recoloca o processo político na estaca zero e vai exigir de novo o uso eficaz de todos os instrumentos de prevenção e repressão que o Estado de direito coloca à disposição do Governo espanhol. Mas todos sabemos que na luta antiterrorista não é possível pedir à acção policial e judicial que resolva os problemas políticos de fundo. E que aquela acção permanente e eficaz apenas pode criar as condições para a democracia eliminar o cancro do terrorismo a partir de uma posição de força e sem concessões políticas.
Cabe agora ao Governo espanhol reconstruir o consenso político para enfrentar os próximos meses que vão ser particularmente duros na luta contra a ETA e aproveitar esta enorme desilusão para isolar ainda mais os terroristas e ampliar na sociedade espanhola em geral e no País Basco em particular a exigência de uma solução política que garanta a paz e a tranquilidade dos cidadãos.

Obs: Nada a declarar. Publique-se.