sexta-feira

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António Vitorino
Jurista
A visita do Papa Bento XVI à Turquia tinha, à partida, um objectivo eminentemente pastoral: tratava-se de estreitar os laços da Igreja Católica com os cristãos ortodoxos e o Patriarca de Istambul. A conferência de Ratisbona e tudo o que se lhe seguiu veio colocar no centro das atenções mediáticas o tema da posição de fundo do Papa sobre o Islão.
A tensão foi crescendo à medida que se aproximava a data da visita, exigindo de todos os protagonistas uma gestão cautelosa e muito disciplinada.
O Papa deu uma inequívoca prova de coragem e de firmeza ao resistir às pressões para adiar a deslocação e não se furtando ao impacto de uma certa hostilidade alimentada por círculos radicais na Turquia e desproporcionadamente ampliada por alguns meios de comunicação social.
O Governo turco, por seu turno, geriu a situação com grande mestria e alguma dualidade, mantendo uma atitude de recatado distanciamento e de colaboração formal, para consumo interno, mas decidindo à última hora proporcionar o encontro do primeiro-ministro com o Papa para mostrar ao mundo.
Quer o Vaticano quer a Turquia retiraram os benefícios próprios que pretendiam desta viagem: o encontro com as autoridades islâmicas e a afirmação do respeito e do conhecimento mútuos permitiram ao Papa recentrar a sua posição no diálogo entre as confissões religiosas; a declaração de um porta-voz do Vaticano sobre a simpatia do Papa para com as pretensões turcas de adesão à União Europeia satisfizeram particularmente o Governo turco. Desta forma discreta afastou-se o espectro das declarações de Bento XVI quando era ainda apenas cardeal, colocando reticências à natureza europeia da Turquia do ponto de vista cultural.
O Papa sublinhou o papel da Turquia enquanto ponte entre civilizações, o primeiro- -ministro turco encontrou nessa declaração o incentivo do Vaticano ao projecto do diálogo entre civilizações que lançou juntamente com o primeiro-ministro espanhol Zapatero.
Do ponto de vista das relações entre a Igreja Católica e o Islão, a visita papal não resolveu - porque uma só visita não o podia resolver - as muitas questões que se colocam no horizonte próximo. Mas a crédito de Bento XVI fica o registo de uma viagem melindrosa ter sido gerida com frieza e grande disciplina pelo Papa, possibilitado assim "um novo começo".
Mas na semana em que o Governo turco averbou esta vitória diplomática nas suas pretensões europeias teve de se confrontar também com um sério aviso de Bruxelas, da parte da Comissão Europeia, tendo em vista a preparação da reunião do Conselho Europeu de Dezembro.
Confrontada com o protelamento, por parte da Turquia, da aplicação do denominado "protocolo de Ancara", referente à abertura dos portos e aeroportos turcos aos navios e aviões cipriotas, a Comissão propõe que haja um período de resfriamento das negociações de adesão cuja abertura foi decidida há cerca de um ano. Esta suspensão traduz-se na não abertura das negociações nos capítulos referentes à liberdade de circulação de mercadorias, ao direito de estabelecimento e à liberdade de prestação de serviços, aos serviços financeiros, à agricultura e ao desenvolvimento rural, às pescas, à política de transportes, à união aduaneira e às relações externas, bem como na decisão de não se encerrar provisoriamente nenhum capítulo das negociações até que a Comissão confirme o pleno respeito por parte da Turquia daquele protocolo.
Embora alguns esperassem uma proposta mais severa da parte da Comissão Europeia, esta iniciativa constitui, por si só, uma sanção à atitude turca: não fecha a porta da possível prossecução das negociações (como alguns pretendiam), mas deixa claro que "a bola está no campo turco" e que Chipre continuará a estar no centro das relações entre a União Europeia e a Turquia até ser encontrada uma solução definitiva no âmbito das Nações Unidas.
Tendo-se como pouco provável que a Turquia evolua significativamente na aplicação do aludido protocolo antes das eleições que vão ter lugar no ano que vem, esta proposta da Comissão, se for aprovada pelo Conselho Europeu, significará provavelmente uma suspensão de facto das negociações durante um ano. Um ano que poderá não ser de tempo totalmente perdido se a Turquia não esmorecer na adopção das reformas internas que serão sempre necessárias e incontornáveis para o ulterior prosseguimento das negociações.
O mesmo ano que será decisivo para saber que novas vias de diálogo inter-religioso foram abertas pelas declarações e pelo testemunho de Bento XVI nesta sua visita à Turquia.
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  • PS: É tão útil ver um Papa corajoso num Oriente perigoso quanto um analista lúcido num Ocidente decadente. Aqui o difícil não é identificar o Papa, mas saber quem é o Papa do papa...