quarta-feira

"Caminhos perigosos: cenários 2015" - por Medina Carreira - no Queijo Limiano

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Notas prévias do Macroscópio:
Confesso que quase nunca tinha consultado o blog Grande Loja do Queijo Limiano, que só pelo título denota um "comboio" de criatividade. Mas quero, antes demais, agradecer o link com a chamada de atenção que tiveram a amabilidade de nos fazer chegar. Até porque o pensamento e Obra do prof. Henrique Medina Carreira é sempre rica em ensinamentos e convoca-nos à reflexão, por vezes de forma intelectualmente provocatória, coisa rara em Portugal. Porque Portugal é um rebanho... Por outro lado, este tema da crise do Estado também nos interessa no plano politológico e sociológico, já que a validade dos modelos de análise, que foram eficazes para identificar o desvio em relação ao que seria a rota de equilíbrio no contexto da estrutura da ordem política anterior, é enganadora dado que o tipo de instrumentos políticos que esses modelos consideram para realizar programas de correcção desses desvios também já foram transformados pelo processo de mudança em curso, um processo que responde pelo nome de globalização competitiva. O que significa, na prática, que esses modelos, tal como as construções ideológicas que difundem as condições das massas sociais, são cada vez menos eficazes na formulação de estratégias políticas adequadas. Dito doutro modo: a perda de eficácia das condições operatórias do Estado nacional em relação aos mercados, à garantia dos contratos e dos equilíbrios sociais, e, mormente em relação à circulação dos factores produtivos (que mexem com toda a actividade económica) - e são co-extensivos ao exercício da sobernaia nacional, estão hoje em perda acentuada de credibilidade e de efectividade. É também nesse contexto que valerá a pena ler o interessante artigo de Medina Carreira - que, em rigor, mais parece um ensaio sobre conjuntura portuguesa. Que tem não só a presciência de diagnosticar o problema sustentadamente, como também a coragem intelectual de sugerir caminhos, apontar alternativas e soluções que supram os velhos modelos de análise utilizáveis no passado recente, porque a crise do Estado nacional ainda não foi resolvida com a configuração de novos dispositivos que possam substituir os anteriores. E uma tradução prática desta ineficácia - subentendido pelo autor de - As Políticas Sociais em Portugal (Gradiva) - está na dificuldade em combinar - na política económica e na correcção dos desvios à rota de equilíbrio da evolução das economias - as indicações da teoria keynesiana com as indicações da teoria schumpeteriana. Posto que em geral, aquelas têm um campo de aplicação nos desvios de curto prazo e circunscritas a espaços nacionais, mas perdem eficácia quando os mercados nacionais se integram em mercados regionais mais vastos e quando a instabilidade monetária dificulta a combinação de estratégias de crescimento - desejadas pelas multidões e pelos interesses organizados de que depende a própria estabilidade do poder político nacional. As indicações schumpeterianas, por seu turno, têm um campo de aplicação definido por mudanças tecnológicas de tipo estrutural, que se desenvolvem no longo prazo, mas perdem eficácia quando os novos espaços económicos, em virtude da integração dos espaços económicos, passam a conter, no seio da sua área de regulação de política económica - sub-regiões e pólos de poder e de atracção de investimentos com elevados grau de modernização muito interessantes e diferenciadores, com idades tecnológicas também apetecíveis aos grandes investidores (criadores de riqueza e de emprego) que hoje as economias nacionais precisam como de "pão para a boca". Por todas estas razões, e mesmo sabendo que isto não dá visitas na blogosfera (o que também não nos aborrece nada) é que convidamos aqui os nossos leitores (que já são muitos e de muitos continentes) a lerem aqui este ensaio do Prof. Medina Carreira (aqui republicado na íntegra). É também uma maneira de não deixarmos que a Verdade estrague uma boa história, como se diz no sub-título daquele interessante espaço de reflexão. O problema é que a Verdade - como o Tempo - é uma convenção entre os homens. A arte está em conseguirmos sincronizar os relógios das economias europeias para a contagem do tempo comum, sem a qual se poderá emitir um sinal luminoso para o outro, e acertar o passo em função do espaço (económico e social) mais desenvolvido até ao ponto de chegada. Aqui duas certezas há: a vida e a morte. O resto é coordenação e gestão das interdependências neste convencionalismo do tempo que hoje colocam todas as economias do mundo numa simultaneidade perigosa.

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* 1. É notória a gravidade da nossa crise financeira pública. E asprincipais medidas anunciadas pelo Governo para enfrentá-la – o PRACE e a reforma das “pensões” -, não chegarão em tempo útil, nem terão a relevância financeira indispensável. “Economia” e “facilidade” são os nomes dessa crise. Entre 1990 e 2005 o “produto” português cresceu 2,4% em média anual, real, enquanto a “despesa corrente primária” subiu 5% (1), as “despesas sociais” 6% e as “pensões” 7%.
A uma economia em queda prolongada (2) correspondeu a “explosão” das despesas públicas. As consequências não poderiam ser diversas das que foram. Agora, já com mais de uma década de atraso, há que corrigir os efeitos deste irrealismo político. Porque os governos não são hoje capazes de provocar o crescimento económico, são mais responsáveis pela moderação dos gastos.
2. Entre nós, não tem sido observado e entendido, com suficiente prontidão e rigor, o modo como evoluiu o último meio século europeu. Daí a notória dificuldade para aceitar o quadro essencial e premente das medidas de contenção dos gastos públicos. Distinguimos, naquele tempo, três fases bem distintas. Na primeira, até 1975, o Estado social provocou um crescimento “explosivo” das despesas públicas, sem sacrifícios fiscais, devido às elevadíssimas taxas de crescimento económico dos “30 gloriosos”anos. Na segunda, aberta pela “crise do petróleo”, de 1973, as economias desaceleraram e instabilizaram-se, e a cobertura das despesas sociais só foi possível através de sucessivos agravamentos fiscais. Por fim, e em redor de 1990, com a acentuação da debilidade das economias e a já excessiva sobrecarga dos impostos, soou o alarme europeu: uns países compreenderam-no e reformaram-se (Suécia, Dinamarca e Países-Baixos);outros não e nada fizeram (França e Itália). A estes deparou-se o inevitável: o Estado social vive do endividamento, que é um caminho sem saída. Portugal, com três décadas de atraso, repetiu o percurso da restante Europa capitalista. A sua economia cresceu a 6% (1960-1975), a 4%(1975-1990) e a 2,4% (1990-2005). Correspondentemente, a sua fiscalidade“saltou” de 21% (1975) para 36% do Pib (2005)
(3). Como outros, o nosso País ficou sem “economia” e sem margem de manobra “fiscal”. E também se endivida. Aos factores negativos que se acumularam na economia, na demografia, nos impostos e na maturação do sistema de protecção social veio acrescer o esvaziamento dos poderes do Estado nacional: já não há o intervencionismo económico eficaz dos anos cinquenta e sessenta. A perda das políticas monetária, cambial, alfandegária, orçamental e de controlo dacirculação de capitais, esgotou o Estado social-democrata e “arquivou” o Keynesianismo. Como Galbraith disse, já nos anos setenta, “a época de Keynes não era eterna”.
Finalmente, a liberalização internacional do comércio entregou à exclusiva capacidade competitiva das empresas locais o destino e o ritmo de desenvolvimento de cada economia nacional. No último século, os Estados nunca puderam tão pouco como hoje. Nestas novas circunstâncias, os que prometem mais “economia” e mais “emprego” não passam de vendedores de ilusões. 4. Segue-se que vivemos numa atmosfera plena de incertezas. OPEC/2005-2009 respeita a um tempo muito curto, foi elaborado sob a pressãoda redução do défice e alimenta-se demasiado dos impostos. Não enxerga longe o nosso provável destino financeiro. E não conheço quaisquer projecções do Governo ou de outros que superem tais limitações.
Face a estevazio, antecipo aqui o estado das nossas finanças públicas até 2015, com o grau de rigor que este tipo de exercício consente. Para tanto, consideram-se: a economia “provável”, com um crescimento médio anual de 2% a 2,5% (4); e a fiscalidade “suportável”, equivalente a 35-36% do Pib. Neste quadro hipotético de trabalho, a “despesa corrente primária” só poderá crescer à taxa nominal e anual de 3% (2005-2010), depois de se ter elevado à taxa de 8% (1995-2005) (5). Com um ritmo anual superior a 3%, as despesas do Estado já não serão fiscalmente financiáveis, antes de 2015. * 5. Depois de anos e anos de irrealismo financeiro, o potencial de crescimento das despesas públicas projectá-las-ão para os 100 (2010) e os 140 mm€ (2015) (6). Porém, nestes anos e conforme as circunstâncias económicas e fiscais aqui admitidas, as receitas públicas totais serão apenas da ordem dos 80 (2010) e dos 100 mm€ (2015), respectivamente (7).
Teríamos então défices da ordem dos 20 mm€ (2010) e dos 40 mm€ (2015) (11%e 19% do Pib), que seriam insuportáveis. * 6. Sem a expectativa fundada de uma solução “económica” e de umamaior margem de manobra “fiscal” torna-se imperativa uma reforma profunda eurgente das políticas de despesas públicas. Tarde ou cedo o Estado enfrentará uma crise financeira séria, que os valores deficitários das projecções deixam entrever. Todas as reduções de gastos que forem conseguidas são positivas, mas nenhuma solução será consistente se desconhecer esta realidade: a “despesa corrente primária” e o “pessoal” +“prestações sociais” correspondem, respectivamente, a 90% e a 72% da “despesa primária” (8). O “pessoal” e as “prestações sociais” cresceram, conjuntamente, à taxa anual de 8% (1995-2005). Deverão desacelerar para 3%,já em 2005-2010 (9). * 7. A maior parte dos gastos com o “pessoal” e com as “prestações sociais” integram as “despesas sociais”: dos 47 mm€ da “despesa corrente primária”, despendidos em 2005, 43 mm€ destinaram-se às “despesas sociais”(10).
Com um tão elevado peso relativo, não se conseguirá “arrumar” as contas públicas sem desacelerar fortemente os custos do “pessoal” e das “prestações sociais”. Expresso de modo diverso: sem uma profunda reforma do“Estado social” (“despesas sociais”), o Estado português não terá sustentação financeira dentro de poucos anos. * 8. Fixado, bem, o quadro prioritário da intervenção, o Governopretende reduzir os gastos com o “pessoal” através do PRACE. Um dos objectivos essenciais deste consiste no abaixamento do seu peso. Fundamentalmente, importaria que diminuísse do equivalente a 15% do Pib para 10-11% (11).
Em todo o caso, trata-se de uma meta que não será atingida, uma vez que: 1.º). Afastada a via dos despedimentos, haverá apenas “disponíveis”, com o direito a cerca de 50% dos vencimentos no activo; 2.º). Por cada 100 000 funcionários “disponibilizados”, reduzir-se-iam as despesas com o “pessoal” apenas em cerca de 6%. O PRACE não produzirá, por isso e em termos estritamente financeiros, o resultado indispensável: seria então preferível o congelamento dos salários actuais até 2010 (o peso do “pessoal” cairia para uns 12% do Pib). * 9. No que respeita às “pensões” da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações estão previstas, ou já adoptadas, diversas medidas.
O respectivo alcance financeiro global também será muito reduzido, em atenção a que: 1.º). O seu peso na “despesa primária” é apenas da ordem dos 20% (14 em 65 mm€, em 2005) (12); 2.º). Os efeitos plenos só serão alcançados em2015. As “despesas sociais”, além daquelas “pensões” abrangem também a Educação, a Saúde, a ADSE e todas as demais prestações da Segurança Social.Globalmente, estas últimas equivalem a 45% da “despesa primária”. Por isso, só com a reconsideração de todas ou de grande parte das “despesas sociais” (que equivalem a 66% da “despesa primária”) será obtido um efeito significativo e suficiente: nunca e apenas com as “pensões”.
Por outro lado, a manutenção do regime da repartição, tal como se pretende, irá limitar-se a diferir novas crises e novas reformas: por cada uma, haverá novas injustiças e um maior descrédito para o sistema (13). Em suma: do PRACE e da reforma das “pensões” não pode esperar-se uma solução para ascontas públicas em geral, nem para as “pensões” em especial. * 10. Não nos iludamos porque estamos numa situação em que vigora a “tirania das circunstâncias”: é secundário se se é de direita ou de esquerda, liberal ou conservador, representante da economia de mercado oudo socialismo (14).
O mais grave problema que enfrentamos hoje é o do Estado: não se sustenta com a economia que temos e outra é irrealizável em tempo útil. Resta repensá-lo e reorganizá-lo. Os números com que fundamento esta posição podem ser discutidos, sempre com outros números. Mas, em circunstâncias normais, não se afastarão muito da realidade. E eles indiciam a existência de sérias ameaças a que só os néscios e os irresponsáveis podem ser indiferentes. Seja como for, ninguém poderá dizerque a gravidade da situação escapou a todos.
Notas:(1). Representava 33% do Pib em 1995 e 40% em 2005.(2). 6% de crescimento em 1960-1975; 4% em 1975-1990; e 2,4% em 1990-2005.(3). Entre 1975 e 2005 a carga fiscal média da UE/15 subiu 8 pontos (de 33para 41% do Pib), enquanto em Portugal aumentou 15 pontos (OCDE).(4). Admite-se um crescimento médio na UE de 2,3%/ano até 2020 e de 1,1%entre 2020 e 2050 (cf. IFRI, Chronique d’un déclin annoncé, Avril 2003,cit. por LE BOUCHER, Economiquement incorrect, GRASSET, 2005, pp. 63-64).(5). Q. anexo, cols. 1, 3 e 6.(6). Q., cols. 4 e 7.(7). Q., cols. 5 e 8.(8). Q., col. 2.(9). Q., cols. 1, 2 e 4.(10). Q. col. 2.(11). É a média da UE/15, em 2002, sendo: 7,9% na Alemanha; 10,3% naEspanha; 8,4% na Irlanda; 8,1% no Luxemburgo; 9,9% na Áustria; e 7,5 noReino Unido (cf. EUROSTAT).(12). Q., col.2.(13). Acerca do sistema misto, vd. Livro Branco da Segurança Social,Janeiro de 1998, pp. 116 a 121. Posição do autor, pp.247 a 254.(14). J.K. GALBRAITH, A era da incerteza, Morais Editores, 1980, pp. 13 e14.