sexta-feira

Teoria da morte

- Costumo dizer que um homem se chega aos "quarentas" significa duas coisas: a) já percorreu metade do seu trajecto de vida; b) já é um testemunho da desgraça, porque na sua idade ele já viu partir muita gente, já teve de enterrar ou ajudar a enterrar outros tantos, familiares, amigos ou conhecidos. A esta relação estreita entre o desejo de durar e a ligação entre a nossa própria identidade e a temporalidade - designo de teoria da morte. Uma teoria que, infelizmente, todos temos de abrir mão um dia, uns mais cedo, outros mais tarde, mas nenhum escapa.
- Aliás, Amitai Etzioni, um sociólogo da área das organizações, creio, dizia que vivemos numa sociedade de organizações: transportes, alimentação, administração pública e uma miríade de outros serviços que atendem necessidades básicas do homem. E quando morremos também temos de contratar o cangalheiro para nos enterrar. Enfim, uma curiosidade de leitura de faculdade que o tempo não apagou. Não sei porquê, mas lembro-me inúmeras vezes deste autor, o Etzioni. Nome giro...
- Mas o tempo dá-nos tudo e tira-nos tudo. O tempo altera a imunologia do nosso corpo e até da alma, descobre-nos as maiores vulnerabilidades que jamais julgávamos ter. E só quando estamos na meia idade é que percebemos que uma criança saudável está nos antípodas de um velho, essa tal encomenda que ninguém mais quer levantar aos correios. É triste mais é assim.
- Tomei conta disto primeiro pela via da filosofia, i.é, da consciência colocada pela própria curva do tempo que vamos dobrando, ano após ano, década após década. Vamos coleccionando anos, verões, outonos, invernos, primaveras... Depois, nem primas, nem veras. É aqui que já não conseguimos abrir esse catálogo de memórias e visualizar essas fotos... Umas boas, outras nem por isso. E assim os anos vão passando sorrateiramente. Senti isso com a partida do meu Q. Pai no Natal de 2000. Que bela prenda.. Talvez por isso hoje "aprecie tanto" o natal...
- O tempo é terrível: com ele vêm as pregas que depois se tornam visíveis no corpo e na alma, amarrotando-nos todos os pedaços de corpo, dando cabo de todas as superfícies planas, desancando nos sentimentos, enfim, operando como se de uma metamorfose se tratasse, só que em trajectória regressiva. Caminhando para um destino de queda, de fim.
- Yourcenar fala-nos disto a propósito da suas Memórias de Adriano, e aproximando-se a morte, declarava: Eu sou o que era, morro sem mudar.
- Os cisnes, quando percebem que vão morrer, tendo cantado bem toda a vida, cantam com mais vigor ainda. Ao homem isso não é permitido. Se ele for escritor está feito, porque já nem escrever pode, sucede-lhe o que sucedeu ao Camilo... Mas algo nos distingue dos cisnes, ao menos o homem quando sabe que vai partir as suas últimas palavras são sempre verdadeiras, ainda que ele nunca tenha falado verdade uma vida inteira. É incrível, mas há casos assim. Recordo, a título de exemplo, a vida de um bandido que integra o nosso imaginário, Pancho Villa que nas horas da morte implorava ao jornalista: "Não me deixe acabar assim, conte-lhes que eu disse alguma coisa".
- Oscar Wild, esse génio de muitas artes, morrendo num hotel miserável, num quarto com as paredes forradas com um papel horrível, declarava: "Este papel de parede está a matar-me; ou vai ele, ou vou eu."
- A dada altura fechamos a nossa história pondo fim ao parêntese do tempo. Do nosso tempo. Do tempo que nos foi dado viver sem que tivéssemos perguntado como e porquê. E é a partir daqui que ou tudo definitivamente acaba, ou tudo definitivamente começa. Eis o enigma. Imagine-se que um tipo vai desta para melhor, e chega ao outro lado e não há net, não há blogs, não há nada!!! Aqui, meus amigos..., aqui é que verdadeiramente começam os problemas.
  • - Não tenho mais nada a declarar
  • Boa noite - e um abraço particular ao Zeca