terça-feira

A Europa, os valores e a família

Neste último Prós & Contras esteve em debate um tema feito de temas, um discurso feito de meta-discursos que não era acessível a qualquer um, nem com diccionário e enciclopédia à mão. Nem poderia ser doutra forma, como é óbvio. Dum lado, César das Neves e o Cardeal Ratzinger, perdão, Saraiva Martins - um dos três homens mais importantes de Roma, logo do mundo; do outro, as usually, dois agnósticos que não gramam a Igreja e estão-se a marimbar para a religião, mormente a do outros: Fátima Bonifácio e o veterano António Barreto - que creio fala sempre do mesmo e refere sempre os mesmos indicadores, diagnostica sempre os mesmos problemas, apresenta sempre as mesmas soluções. Há uma década que o vejo assim, já enjoa, confesso. Não vamos aqui fazer o retrato ao boneco, seria impossível nem tenho competência para tamanho acto de fé, mas tão só deixar uma nota impressiva e, na linha de César das Neves, dizer qual é a minha "agenda" e vender o meu peixe, que tem o tal Omega3 e faz bem à tola.
Começo por dizer que gostei. E começo pelo fim: pela pergunta, já no meio da turba, que o Cardeal Saraiva Martins - coloca a Fátima Bonifácio, - falando "axim" parecendo aqueles homens que vêm do Fundão trabalhar para Lisboa e descobrem na carpintaria a sua mais alta profissão. Jesus também era do metier. O Cardeal pergunta à srª drª Bonifácio: não acha que uma criança deve deve ter um pai e uma mãe? E a senhora (teve) de anuir, porventura, muito contrariada, mas lá teve de ceder às pretensões da Igreja em querer impedir que os resíduos que andam por aí, feito de movimentos pro-gay (incluindo fufas e homosexuais masculinos), em aceder à cobertura legal para amanhã poderem adoptar meninos e meninas no quadro de famílias gay.
O Cardeal, por entre aquelas palavras sábias, monocórdicas e sensatas, arrancou bem e cortou a meta ainda melhor. Foi o que menos falou e o que mais acertou. E arredou as aspirações daquelas pessoas que por opção sexual (homosexual) querem ter a possibilidade de adoptar crianças como se de um casal tradicional se tratasse.
É claro que antes houve uma hora de cortesia, de fuagrá, de azeitonas, presunto e Pias, muito Pias. Desconfio até que houve ali toque de Conventual, embora desconfie que o Cardeal é homem para num simples jantar deitar a-baixo meia dúzia de garrafinhas de Porta-da-Ravessa - logo a abrir. É assim o trabalho dos santos, cozer bem a união sagrada entre o sangue do homem e o vinho de Deus, Amén.
Mas dizia que na 1ª parte foi um partir pedra, e todos exerceram a sua martelada, e só na 2ª parte César das Neves, para variar, deu um pontapé na vitrine e assinalou aquilo que, no seu entender, eram as clivagens da Europa neste carrefour em que se encontra - no meio da globalização cultural e económica e uma profunda crise moral, política, social e de finanças públicas europeia, portanto a crise é múltipla e tranversal.
No arranque falou-se da espiritualidade que a Europa não tem e deve ter, até se invocou J. Delors e a parábola da bicicleta em velocidade de cruzeiro; na necessidade de reactivar a Europa com uma nova Constituição - de preferência com a inscrição no seu preâmbulo do legado judaico-cristão, e acho bem. Lá porque o dr. Barreto não seja crente, abomine a Igreja e deteste frades - e a srª drª Bonifácio denotar uma certa inclinação para as famílias emergentes, tal não significa que se passe uma esponja sobre a história e os factos que têm séculos. Factos são factos, como disse o Cardeal. E as opiniões ficam para cada qual, claro está.
Barreto asseverou que um excesso de federalismo pode matar a Europa; mais nacionalismo, racionalismo, iluminismo e, não esquecer, fazer "parar a bicicleta" é que é, no entender do eminente sociólogo, que diz sempre o mesmo. Porque só a bicicleta parada, ao invés da receita ciclistica de Delors que a quer a andar - é que Portugal se descobre a si e a Europa se reencontra consigo própria. Tudo, portanto, numa espécie de volta à França em bicicleta mas com escala em Portugal.
A drª Fátima Bonifácio só dizia uma coisa: que a taxa demográfica era baixa e que assim não vamos a lado nenhum... Deu vontade de perguntar-lhe se a coisa, ou melhor, se essa tendência que tanto a apoquenta se resolve consagrando na lei os casamentos de homosexuais... É óbvio que não!! Foi pena que só no fim o tenha assumido, depois de instada pelo Cardeal que, aliás, lhe fez xeque-mate. Alias o Cardeal Saraiva ouvia cirúrgicamente César das Neves e depois, quando podia, lá enfiava a estocada final. Era como se ambos ambos, César das Neves e Saraiva Martins - sob a insiração romana e a estética da Capela Cistina "matassem o porco" duma Europa que agonisa. O "porco" aqui é uma certa concepção de organização e de produção e reprodução da sociedade que o BE tanto aprecia.
Pelo meio ainda houve um distinto interessante: Barreto fala da razão que dispensa a fé; César das Neves fala da razão que a segue. Esta é, regra geral, mais produtiva, mais simbiótica, até porque a Europa do pós-II Guerra Mundial se reconstruíu à sombra dos democratas cristãos, Robert Schuman, De Gasperi, Monnet e outros. É da praxe dizer isto. Aliás, Adriano Moreira que é tão democrata como Salazar, anda sempre com eles na ponta da língua. Enfim, é já uma cartilha conhecida, depois remata com o vigarista do Pierre Teillard de Chardin, esse grande paleontólogo e falsificador da história e ficam todos bem na fotografia.
Mas tinha ficado logo ali desenhado uma linha de pré-clivagem, e tudo fazia supor que César das Neves iria voltar à carga e recentrar o problema - On his way, as usually... E para ele o problema não era o "choque" de religiões insistentemente colocado por dona Fátima, talvez por analogia ao choque tecnológico de Sócrates ou à teoria de Samuel Huntington, mas a salvaguarda da célula básica da sociedade: a família. É claro que todos os homosexuais - homens e mulheres - que estavam no auditório e, porventura, no painel, não gostaram e assumiram essa clivagem, ainda que de forma polida e algo contida. Vide o esforço feito por F. Binofácio. Afinal, estavam alí com o 3º homem mais importante de Roma. Faltou saber se o 2º e o 1º - para César das Neves - eram os dois outros italianos que actualmente disputam as eleições legislativas em Roma: o "Cavaleiro" Berlusconi e Romano Prodi, ou seja, um empresário e magnata vígaro ate à medula e um economista que nem expressar-se sabe na própria língua. Entre os dois o diabo que escolha..
Depois disseram umas tretas sobre o islão, os imigrantes económicos, a integração, o multiculturalismo, o renascimento do islão, os perigos que uma eventual islamização terá para a Europa e o actual Maio de 68 - que tem hoje uma natureza diversa: é conservador. Pudera... com tanta falta de emprego e o que existe é precário, até César das Neves andaria em Paris a virar carros, apedrejar e rasteirar polícias, provavelmente pedrado, tudo em nome da actual utopia: viver condignamente à sombra do (neo)liberalismo. Para milhões de jovens por essa Europa fora tal não é fácil, reconheça-se. Depois se os meninos não crescem não é porque se fala menos amor, mas porque se pretende engravidar menos.
Mas gostei daquela tirada quando referiu que ter hoje um filho é um custo e não um activo, é mais um "bem de consumo" do que um "investimento" com imediato retorno, ao invés da sociedade industrial em que as famílias constituíam uma prole... para serem muitos os braços disponíveis para o trabalho que hoje já não há, ou converteu-se em coisa nenhuma na sociedade do conhecimento. Sempre lúcido este "nosso" César das Neves. É uma vox que faz falta, que ilumina, que perturba, por vezes encandeia. Mas aqui subscrevemos o Jumento - reportando-nos ao seu último artigo no dn: onde é que estava César das Neves no 25 de Abril... "Nas avenidas novas..." como sugere o Jumento? Confesso, pela positiva, registar este novo interesse intelectual que manifesta pelas assimetrias e injustiças entre as pessoas, especialmente por ser mais grave hoje em democracia do que dantes o era em ditadura. Esta a novidade, e que é grave e preocupante, dado que reflecte um terrível paradoxo dos tempos.
Mas tirando a lenga-lenga de Bonifácio a propósito da demografia por ausência que quecas institucionalizadas e dos putos que não nascem nem caíem do céu ou são trazidos pelo bico da cegonha (que vem de França - como me diziam quando era puto), dos perigos da islamização da Europa e do terrorismo islâmico - que é um elemento altamente perturbador das relações internacionais contemporâneas, também é redutor, creio, fazer corresponder - como fez César das Neves - os problemas de declínio moral ou de decadência europeia com a questão da fragmentação da família, a tal célula que se pretende preservar a todo custo. É curto...
Nao iremos aqui falar do aborto nem da natureza das religiões no espaço ecuménico mundial, que fica para outros altares, mas tão só enunciar aqui aquilo que poderia traduzir os tais factores de declínio político, moral e civilizacional que atravessam toda a Europa. E aqui percorre esse tal factor suplementar, ou seja, a vitalidade demográfica das populações árabes num período em que as regiões vizinhas - a Rússia e Europa - têm uma evolução demográfica negativa que as torna vulneráveis à penetração por imigrantes árabes. Tal diferença de presões ppulacionais desencadeia naturalmente movimentos populacionais que não são mais controláveis através de barreiras politico-administrativas, culturais ou outras. Na prática, e era isto que a sr. drª Bonifácio - que tem mais nome de Santo - e é historiadora, deveria ter dito, e não ter-se enxofrado com César das Neves por causa das famílias emergentes... Deveria ter reconhecido, tal como Barreto, que estudam a dinâmica das populações à décadas, que cada pessoa que se movimenta poderá estar disposto a abdicar da sua singularidade cultural, mas logo que se constitui em fenómeno estrutural, ou seja, num efeito de massa, essas comunidades tendem a organizar-se nas sociedades de destino, e a reivindicarem a sua própria identidade cultural. É inevitável. Ora, é nesse sentido, e não na formulação simplista em que Bonifácio colocou o problema, que a penetração pacífica das sociedades desenvolvidas por imigrantes pobres pode vir a revelar-se numa ocupação agressiva, quase por analogia a uma poderosa campanha militar liderada por Napoleaão.
E na raiz deste declínio do lado do Velho Continente - estão a perda progressiva de um conjunto de variáveis que fez com que nestes últimos 20 anos a Europa perdesse posições de poder económico, comercial, político e diplomático. O Estado deixou de conseguir assegurar padrões de vitalidade social, designadamente ao nível da sua produtividade, da sua segurança social, nos equilíbrios sociais e no plano da distribuição dos rendimentos dentro dos espaços nacionais. Quer dizer, houve de facto uma mudança de paradigma acompanhado da perda de eficácia dos mecanismos de crescimento rápido que fez com que tudo se alterasse no seio da família europeia. O quê? as poupanças, aumentámos o endividamento, não se criaram postos de trabalho para aqueles que são desmantelados, etc, etc... Depois, uma razão maior: não existe ideias, pensamento, reflexão, estratégia europeia. O homem está em fuga de pensamento, como diria Heideger.. Nessa linha, Durão Barroso tem-se revelado um mero manga-de-alpaca que gere o convento europeu como uma sopeira transmontana que desceu até Lisboa para servir em casa de gente fina, digamos que em vivenda no Restelo de ex-ministros salazaristas que ora se reclamam do 25 de Abril...
Se esse é o passivo que justifica a decadência global em que a Europa se encontra, podemos aduzir ainda a falta de capacidade de risco, de competição junto dos mercados asiáticos, de dominação e de capitalização. Hoje a Europa não comanda nenhuma desta variáveis de poder que deveriam organizar os vectores de mudança dominantes em cada período ou conjuntura.
Acho que são estas insuficiências, e não tanto a desmontagem do conceito tradicional de família, que coloca hoje a Europa no beco em que se encontra. Aliás, se César das Neves articulasse o seu discurso e linha de argumentação mais com o seu saber económico teria, porventura, dado um "bailarico" ainda maior aos dois agnósticos no painel: Barreto e Fátima. Não o fez, foi uma opção estratégica e, por isso, afunilou muito o debate que fechou com aquela questão-chave que entalou Bonifácio: a senhora acha ou não que uma criança precisa de um pai e de uma mãe??? E ela responde: precisa... Que mais poderia ela dizer... Denunciar-se públicamente? Jamais.. Mas percebo que César das Neves talvez tivesse querido marcar o debate não apenas naquele programa, mas na própria sociedade portuguesa. E se o conseguiu, como creio, então César das Neves está cada vez mais eficiente e eficaz nas suas comunicações públicas. Desconfio mesmo que por estes andar, o Cardeal Saraiva Martins, que se ocupa da beatificação dos Santos, ainda o santifica em vida. Por mim, confesso, que até gostaria de ver um santo beatificado em vida, seria logo o primeiro a ir ter com ele e pedir uma catrafada de milagres. Imagino agora o que as pessoas lhe pediriam... Até Cavaco, a partir de Belém...
Por último, devo deixar aqui uma reflexão de âmbito mais estratégico. É que a crise actual não terá resolução à vista através da política económica, ié, através de maiores eficiências nos estímulos ao crescimento económico ou confiando as expectativas nas capacidades regeneradoras dos ciclos económicos quando estes entram em rota ascendente, depois de absorverem a destruição das fases mais negativas dos ciclos económicos, ou até de um maior equilíbrio entre os principais centros de decisão e de racionalidade económica entre as principais áreas regionais ou grandes espaços.
Então onde é que poderá estar a resposta a este nó górdio??? Também na família, naturalmente, nas empresas - pequenas e médias - mas essencialmente numa outra atitude que envolve as bases mais profundas das sociedades, ou seja, o modo como cada região, cada sociedade, cada país, interpreta as suas relações com as outras regiões culturais, as quais, por seu turno, envolve a reconfiguração dos sistemas culturais assim como os modos como estes produzem as suas imagens de futuro, criam os seus guias de acção, edificam o seu padrão de modernização e desenvolvimento.
Um padrão suficientemente elástico por forma a permitir incluir, entre muitas outras variáveis, a defesa e promoção da célula matricial da sociedade que tanto apoquenta o nosso pensador César das Neves, mas que ele, talvez sem querer, talvez por um pequeno irracionalismo do momento gerado pela temperatura dos holofotes, tenha cristalizado em demasia afunilando, consequentemente, o seu próprio discurso na célula da família. Mas é óbvio que se não fosse a sua brilhante intervenção, assumindo a ruptura epistemológica que já se adivinhava, nem que fosse para quebrar a rotineira sapiência de Barreto, o programa ficaria gizado por um registo linear, com muitas concordâncias e ave marias sem qualquer interesse. As clivagens têm sempre o mérito de clarificar os campos, dividir as águas, objectivar o sentido e racionalidade das políticas públicas a haver no futuro.
Em suma, aquilo que eu esperava que César das Neves tivesse dito e não disse, bem sei que é fácil falar deste lado da bancada, sentado no sofá no à-vontade do lar entre martinis, tâmaras e salgadinhos, era que Portugal tem de produzir uma imagem de futuro. Mas não é uma imagem, ou paradigma, que passe exclusivamente pela promessa do desenvolvimento económico que reduz a conflitualidade, dado que esse tipo de promessa também já a conhecemos, além de que esse tipo de desenvolvimento económico também pode ser culturalmente rejeitado. Portanto, não é a promessa de desenvolvimento que traz "peixe à lota". Nem é o peixe na lote que reduz ou evita a possibilidade dos gatos andarem à bulha por umas cabeças de peixe. Logo, a promessa, em si, não tem um significado positivo, mas pelo menos pode ser interpretada como um bom pretexto para retomar a anterior linha de relação de dominação que vinha de trás e foi progressivamente interrompida com a queda do Muro de Berlim e depois agravada com os conhecidos ataques do terrorismo global, que têm aumentado a incerteza e feito da variável "medo", ao bom estilo hobesiano, um importante dispositivo de chantagem nas relações internacionais contemporâneas com reflexos nefastos na vida intrasocietal.
Em suma, e salvaguardando o saber providencial do Cardeal Saraiva, e o visível "amor" que Fátima Bonifácio nutria por César das Neves aliado à impotência epistemológica de Barreto, que, apesar de tudo, teve o mérito de ser o único interveniente a agitar o programa e a propôr uma linha de fractura - ou fracturante - que sinalizou um aviso à navegação do Bloco de Esquerda, do PCP e PS, - que ora conta com um poderoso adversário em Belém. Diria, para concluir, que faltou a César das Neves uma dimensão estratégica que ora pensamos, na medida do possível, suprir. Para mim, a questão da família é uma questão micro, especialmente à escala europeia. SE hoje a taxa de natalidade na Europa é regressiva tal deve-se não só à fragmentação dos costumes que leva a um menor número de casamentos civis e religiosos(logo, a um enfraquecimento do rebanho da igreja...), mas à circunstância material de que as pessoas não querem deliberadamente ter filhos porque não têm condições sociais e económicas para os ter. Ponto. O resto é retórica de filsofia económica e social que qualquer cientista desmonta em dois tempos. E se em quinhentos os portugueses, antes de zarparem e cruzarem os mares alí a partir de Belém - se agarrassem a essa questão da família que perturba César das Neves - ainda hoje estaríamos todos confinados ao mesmo rectângulo. Só que com uma pequena grande diferença: jamais teríamos feito os Descobrimentos... É que por vezes a família só dá problemas, e a falta dela também. Daí o impasse.
  • Nota: Dedicamos este post a todos aqueles que amam Deus, mesmo sem o saber