O velho amigo do saber e a sabedoria em pessoa: Agostinho da Silva
Na fronteira das comemorações do centenário do pensador Agostinho da Silva sou forçado a concluir que as coisas mais difíceis e complexas são depois vertidas em coisas simples. Mas estas não se entendem sem antes compreendermos aquelas. Parece que é um jogo do gato e rato lançado pelos deuses só para desafiar a bondade e inteligência dos homens. Da filosofia à espiritualidade, da religião à física para chegar à metafísica depois temperada com poesia, da sociologia da esperança à história sempre recriada e reiventada - Agostinho da Silva representa hoje essa dose de "simplicidade complexa" (porque não concatenável numa teoria, numa só corrente de pensamento). Uma espécie de quadratura do círculo em que tudo se ajusta, e o que não cabe fica creditado à tal sociologia da esperança que empurra Portugal para outros "amanhãs que cantam": na economia, na sociedade, na cultura e, se possível, na política.
- Na alta política, incluindo a cooperação internacional e a lusofonia que hoje está muito paralisada. Sendo também um profeta sem síntese à vista, qualquer teoria que sobre ele se faça será sempre pequena demais para tanta complexidade. Mas em nenhum outro homem vi tanta conciliação entre conhecimento, saber, sabedoria e bondade. Tudo reunido num só homem com tamanha plenitude. Julgo que era esta faceta que fechava o círculo daquele processo complexo. Tive o prazer de o conhecer e o gosto de estar com ele, e hoje sinto-me tanto mais reconfortado porque esses tempos coincidiam com os tempos das aulas de faculdade em que pouco ou nada se aprendia. Hoje constato quão abençoadas foram essas faltas. Se as pudesse repetir ou recriar tenho a sensação de faltava o curso todo, pois além de não ter de pagar propinas o capital de conhecimento era também capaz de sair mais reforçado.
- Que mais direi sobre Agostinho da Silva... Pudemos ser ambiciosos e lançar OPAs sobre patrimónios maiores do que aquele que temos ou valemos, mas há coisas que se não podem comprar. E Agostinho da Silva representa hoje esse capital de esperança que cataliza muitos de nós na busca e na construção de um futuro melhor que nenhuma OPA jamais conseguirá adquirir.
- Julgo, contudo, que o seu maior poder, influência e autoridade advinham precisamente desse seu poder simbólico, já que era dele que resultava a enunciação dos problemas, de fazer ver e de nos fazer crer, de justificar ou até de transformar a nossa visão do mundo através duma simples conversa, que cultivava com os amigos que o procuravam, como eu e muitos outros como eu. Alguns souberam-lhe agradecer esse legado ainda em vida.
- Um legado que era tanto racional quanto carismático, quase mágico que permitia depois ao seu interlocutor obter o equivalente daquilo que é obtido pela força. E porquê? Voltamos ao mesmo: Agostinho da Silva não se consegue explicar pela via racional, pela palavra e pelo discurso já que muita da sua essência, creio, era mística - quase mágica - e era esse dom com história e muito mundo à mistura que depois nos fascinava e nos mobilizava para o pensar e o agir. Neste sentido a utilização do seu método subversor para surpreender a realidade, capturando-a de costas e de lado, desnorteava qualquer filósofo sólido, físico, engenheiro, arquitecto ou cientista social ou outro homem de cultura em sentido lato.
- Mais no fim da sua vida, que fui acompanhando até à cama do hospital, talvez tivesse percebido que até no sofrer esse Homem era, de facto, um ser superior. Simplesmente superior partilhando sempre tudo com todos. Julgo que até na morte ele procurava dar mais vida e iluminar aqueles que ficavam. Pelos menos foi isso que senti. E se hoje sei alguma coisita a Ele lho devo. Por isso lhe dedicamos aqui estas palavras ensonsas, meio anárquicas que colhemos do método que pratilhávamos. O Sócrates depois compunha tudo...
- PS: Um abraço ao Afonso C. pela amável chamada de atenção que, afinal, a ele também diz algo.
- Afinal, "o homem não nasceu para trabalhar mas para criar" como diria Agostinho da Silva. Há postais e postais: este tem história e mundo, muito mundo. Tanto que não temos mapa para ele nem método que chegue para o medir. "Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar a mim não teríamos talvez dois corpos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem."
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