sexta-feira

Assassínio na estrada

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  • Durante metade da minha vida morei em Benfica. Habituei-me a conhecer aquele espaço e a frequentar, como todas as pessoas, locais comuns. Pastelarias, livrarias e também postos de abastecimento, dado que os carrosainda não andam a água. Num desses postos de abastecimento, há cerca de 15 dia, ocorreu uma tragédia. Hoje, por mero acaso, revi a cara do pai do rapaz de 30 anos - que fora mortalmente baleado, após uma richa de estrada. Parece que a condusão começou com uns desacatos ao volante, com ofensas e gestos, seguida de perseguição. Já no dito posto de abastecimento - onde travaram argumentos de força - houve cenas de pugilato, puro e duro, como se um posto de abastecimento de combustíveis fosse um ring de boxe. A coisa agravou-se e um deles deu, simplesmente, uns tiros no outro e matou-o. É verdade, matou-o por causa duma discussão de estrada. Como hoje revi a cara do pai (que deu a cara na televisão) cujo filho perdeu a vida, desta forma trágica, tentei perceber, porque também ando na estrada e não posso com azelhas e chicos espertos e quejandos condutores de aviários, porque razão estas coisas ainda acontecem..
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  • E cheguei a certas ideias mais ou menos fixas que aqui partilho consigo, que também é condutor. De facto, um carro é uma máquina que nos ajuda a dominar o tempo e a distância. Tem uma energia fabulosa. Conduzir dá a ilusão de dominarmos o tempo, em lugar de o suportar. Parece até, para alguns, que nos tornamos imortais, tal o fulgor. Talvez, assim se explique o comportamento de muita gente impreparada psicológicamente para ir para a estrada, causando mortes desnecessárias. Muito condutor de bairro diz que demorou 15 minutos Cascais - Benfica. E di-lo com orgulho. Ou Lisboa Porto em 80 min. Ou ainda, se for para o exterior, que fez Paris - Lyon em 120 min. É esta vitória do homem e da máquina sobre o horário que se exprime num "domínio" sobre o tempo. O tempo - essa eternidade que desconhecem e só por arrogância e manifesta estupidez afirmam tais barbariedades. Graças às suas mãos, pés e habilidade de condutor domingueiro (o chamado barrão) - que se evade do tempo, ou melhor, tem a ilusão que o conquista, por vezes é para sempre e a coisa termina num funeral.
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  • Mas isto não explica porque razão os nervos de uns condutores servem para matar outros condutores. Acresce que a vida do homem-urbano é mais agitada do que no meio rural, onde a calma é maior e todos, práticamente, se conhecem. Daí a maior tolerância no espaço não urbano. É, pois, na urbe que o homem se torna súbdito e senhor do carro, dono da velocidade da sua máquina, que manda no tempo... Pois ele até faz Cascais Lisboa em 15 minutos, e à noite ainda rouba mais 5 minutos ao tempo, porque apesar de se ver menos bem há menos trânsito.
  • Temos assim o homem moderno ao volante da sua máquina, e se o seu carro for cabrio - então ainda melhor. Aí o espalhafacto junta-se à necessidade de mostrar o status (que se não tem) através do seu belo carro. É nesse momento que ele mostra, de facto, quem é: senhor da máquina, com um potente motor, que lhe obedece sempre que piza no acelerador e arrota, e o motor responde exactamente à definição que um dia, Aristóteles - há já muito tempo - quando ainda não existiam carros e as pessoas se matavam mas era por outras razões e doutra forma - refere que o condutor é verdadeiramente um escravo da máquina, apesar da ilusão de a dominar.
  • Certamente, que há pessoas e pessoas... Assim, qualquer homem, com escassa formação intelectual e cultural, domina uma máquina, uma maravilha da técnica que galga o tempo. O carro é, assim, uma espécie de máquina do futuro, um instrumento animado. A que o homem moderno sucumbe. Basta-lhe pizar no acelerador para desencadear um poder incrível, uma força bruta. A tal ponto de nos interrogarmos como é que num espaço tão diminuto para o motor cabem tantos cavalos...
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  • Ora - quando os milhares de pressões e coações, conflitos latentes e objectivos - que cada um dos condutores transporta (sem querer) para a estrada - e alguém, geralmente outro condutor que vai atrás, à frente ou ao lado, maltrata o "eu" e o reduz a uma espécie de formiga que pode pisar, esse homem-formiga, qual átomo enfurecido tende a responder não com a cabeça com ideias ordenadas, mas com todos os cavalos desgovernados do seu motor, que bruscamente (des)governa desencadeando, não raro, graves e trágicos acidentes. Outras, como no caso vertente, não há acidente na estrada, mas há perseguição, ofensas pessoais, luta mano a mano e, por fim, o colapso de um deles, ou de ambos, quando a fatalidade é maior.
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  • É nesses momentos de euforia que certos condutores ficam automaticamente embriagados com a brutalidade dos seus cavalos que têm no motor que ostentam. Ficam sobreexcitados e isso conduz a um narcisimo perigoso, por vezes mesmo inimigo, potenciado pelo ódio acirrado pelas ofensas gestuais e verbais que entretanto já se debitaram com o testemunho do alcatrão.
  • Temos assim o caldo de cultura propício para o pior, e o pior é, por vezes, uma cova um caixão na flor da idade, aos 30 anos. Isto é dramático, trágico. Chego mesmo a pensar que as nossas vidas são tão más que a identificação dos milhares de problemas que temos com o volante do automóvel, numa prodigiosa relação entre o homem e a máquina, é terrível. E ao menor atrito, ao mais pequeno arranhão ou gesto, lá se vai a integridade pessoal, e alguém é esmurrado sem bem saber como e porquê. É, afinal, uma pura manifestação de força que noutros contextos não é tolerada. A ideia dominante do condutor é a seguinte: Eu tenho todos os direitos do mundo. A estrada é um prolongamento do meu quintal, para os que o têm, naturalmente. E o "meu" carro é o melhor do mundo. A inibição não existe, pois ele continua a escarrar pela janela do seu carro, que conduz maravilhado; apita 3 vezes quando passa por uma senhora que o desperta, e assobia e palita os dentes, enquanto se penteia iluminado pelo espelho retrovisor. Por vezes, de tanto pentear o cabelo que já não se tem, ainda se inventam alguns acidentes. O que também não deixa de ser trágico. Um calvo, pentendeando-se ao volante, e por força dessa ilusão capilar - gerar acidentes. Tudo se vê na estrada, até senhoras idosas a partir eléctricos e a culpar o maquinista do amarelo...
  • Colhemos aqui, ainda que imperfeito, um pequeno perfil-tipo de muitos cromos que matam nas estradas portuguesas. Além de lamentável, isto é um crime. E é esse tal "super eu" que passa a governar a relação do condutor com a sua máquina, só muito raramente observando a lei ou a coacção moral das autoridades. Com medo do apito, do cacete e, agora, do valor da multa, que desequilibra qualquer chefe de família da classe média.
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  • Com tanta educação e campanha de prevenção rodoviária, apesar de termos polícias que bebem cerveja e multam alcoolizados, ainda se verifica em Portugal, no séc. XXI, esses caóticos e fatais poderes agressivos - que parecem, por aqueles que os praticam, ao mesmo tempo purificadores, como se essa violência predominantemente masculina pudesse explodir na estrada - com injúrias, agressões verbais e gestuais, destabilizando todo o trânsito no espaço envolvente. E depois, como se essa cegada anárquica pudesse ter lugar numa sociedade civilizada, ainda há pessoas que pensam que o carro é aquela máquina para transpor o espaço e o tempo, fazendo 10 min. Cascais Lisboa - e, pelo caminho, se houver algum desatino, dá-se uns tiros e mata-se na estrada, porque alguém fez uma aposta que não podia perder... Desta vez, alguém só já gastou 8 min.
  • Confesso que fiquei profundamente chocado com aquele assassínio na estrada, que podia ser evitado com duas palavras e um aperto de mão, mas enquanto esse aperto de mão vem alguém teve de encomendar um caixão e sepultar o jovem de 30 anos, que ainda tinha todo o tempo do mundo para viver, para andar a pé, de bicicleta e de carro. Mas o tempo é tão dono de si que não permite andar para trás, e devolver a vida aquele que brutalmente a perdeu. O tempo é em si, uma eternidade, e nós - moscas nele, que outros vão esmagando à sua passagem.
  • Hoje quando olho para uma máquina, sobretudo quanto mais potente ela for, mais tenho a consciência que deverei observar os limites, todos eles. E não podemos esquecer que para certas pessoas o carro é o seu casulo, a sua vida, e é por ele - com um genionizinho colérico - que se mata como em África e no Brasil. Um fenómeno bizarro, pois os carros já são tão caros, o Estado rouba outro tanto nos mega-impostos para os combustíveis, e depois ainda andarem aos tiros ...
  • Em inúmeros casos, que já vi na estrada, julgo que o carro desempenha para certos condutores uma função de fixação, uma mania levada ao extremo, desde logo, pela forma como os pintam, os rebaixam, enfim, os artelham, para, assim, se sentirem mais homens na estrada - quando porventura, não o conseguem ser noutro local que agora não digo. É lamentável constatar que para muitos assassinos que espalham o sangue na estrada, matando pessoas inocentes, de forma directa ou indirecta, o automóvel represente essa catarse, dando-lhe uma ilusão de descompressão. Que termina na daceia por muitos e bons anos... Aí o tempo é terrível, não há liberdade, a sua passagem fica mais lenta, apesar do envelhecimento ser mais rápido e percebe-se melhor a revolta do Canário quando o vemos na gaiola...
  • Este pequeno testemunho, que faço quase em homenagem a todos aqueles que são vítimas dos terrores que ainda andam nas estradas, e não são apanhados pelas autoridades que se ocupam a multar condutores indefesos e mal estacionados porque não lugares para tal, serve, tão só, para nos fazer a todos reflectir, começando por mim próprio, tentando consciencializar o maior número de pessoas que as manias, os complexos de superioridade, as fraquezas, as poezas, não se conquistam ao volante, muito menos a matar pessoas na sequência de um qualquer trajecto, por mais curto que seja..
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  • No fundo, acho que poderei dizer que isto acontece porque os homens se odeiam uns aos outros, apesar do Papa ter andado a doutrinar estes muitos milhões de homens desde há 30 anos. Fenómenos como o que ocorreu em Benfica - e que a memória visual do pai do rapaz assassinado me suscitou, são fenómenos secundários que só desaparecerão se o homem tiver mais interesse pelo mundo e também pelo seu semelhante. O que não se consegue, convenhamos, com este código da estrada, que mais parece o novo código tributário, lembrando aos cidadãos deste país que serão literalmente esbulhados, literalmente, roubados pelo imposto imóvel municipal que têm de pagar... Uma receita das autaquias para inglês ver e continuar a deixar as ruas cheias de ká-ka de cão que depois transportamos para o tapete do quarto onde dormimos...
  • Mas para que isso aconteça, ié, passarmos a dispor duma melhor qualidade de vida, mais rica, mais plena, mas descontraída, o automóvel jamais poderá ser uma arma mortífera, para passar a ser visto com aquilo que na realidade é: um brinquedo fantástico, que denuncia o talento humano, e é incrivelmente fecundo para quem saudavelmente sabe ter um automóvel e andar nele. I.é, sem ter de matar ninguém e respeitar a cronologia do tempo e a dinâmica do espaço encerrada nele...
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  • De que nos serve ter uma grande máquina se não o sabemos conduzir... Pense nisso, pela sua riaca saúde, enquanto é tempo...