quarta-feira

Jorge de Sena - Segurança, Segredos de Estado e Liberdade


Nota prévia: O olho clínico de Jorge de Sena (1919-1978), que se auto-exilou no Brasil e depois nos EUA, deixa-nos aqui um traço de Portugal nos longínquos anos 70 (do séc. XX), mas podia bem encontrar tradução plena nos dias d´hoje que nos envolvem nesta multidão de escândalos financeiros, políticos, económicos e que têm sempre uma brutal consequência social cuja factura é paga sempre pelo "zé povinho". 
Nem a Justiça escapa nesta leva, por ser aquele subsistema de alta administração do Estado que promove as fugas de informação, a violação ao segredo de justiça e, por essa via, é uma das cabeças da serpente do estado global lastimoso a que chegámos. 
Vale a pena meditar nas palavras de Jorge de Sena. Foi há 30 anos que o escreveu, mas podia ter sido ontem, hoje, amanhã, ou depois de amanhã!!! É um poema sem tempo. O que revela que a poesia consegue antever aquilo que os manuais de Ciência Política, Sociologia ou Economia têm sérias dificuldades em perspectivar.
A amiga Anália Soares lembrou-se dele hoje. E foi uma lembrança bem recordada. 
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1

Hei-de ser tudo o que eles querem:
a raiva é toda de eu não ser um espelho
em que mirem com gosto os próprios cornos,
as caudas com lacinhos, e os bigodes
de chibos capripédicos.
Não sou nem sequer imagem.
Mas voz eu sou
que como agulha ou lança ou faca ou espada
mesmo que não dissesse da miséria
de lodo e trampa em que se espojam vis
só porque existe é como uma denúncia.
Hei-de ser tudo, não o sendo. Um dia
– podres na terra ou nos caixões de chumbo
estes zelosos treponemas lusos (1) –
uma outra gente, e limpa, julgará
desta vergonha inominável que é
ter de existir num tempo de canalhas
de um umbigo preso à podridão de impérios
e à lei de mendigar favor dos grandes.


2. 
De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado
ou para melhor êxito
nas negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram sempre desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.
Porque, se há algum segredo na vida pública
que todos não podem saber
é porque alguém, sem saber,
é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos e dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou o fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam decentemente
senão aos maus actores.

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Jorge de Sena
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