quarta-feira

A indiferença afectiva de Ricardo Salgado. Portugal-político na cadeia



O crime encontra-se no coração da criminologia. Mas o coração, por crucial que seja, é um entre outros órgãos. Pelo que o seu papel só poderá ser compreendido no contexto do organismo que integra. Ou seja, Ricardo Salgado era o regime: nomeava ministros, secretários de Estado, sponsorizava campanhas eleitorais, era íntimo de Belém, mandava no sistema económico e financeiro nacional, os centros de decisão estratégicos (nacionais) dependiam do seu conselho e anuência. Nada de importante em Portugal lhe passava ao lado. 

Desde o sector segurador, às telecomunicações, ao sector da saúde, agências de viagens... Tudo desembocava em Ricardo Salgado ou na família Espírito Santo. Até enjoava. O método de governance do banco era, consabidamente, altamente concentrado nele, Ricardo, que só delegava nas matérias menos relevantes. Ricardo era, de facto, o verdadeiro personagem do drama: movimentava muitos milhões de €uros, tomava as grandes decisões, era o player melhor informado, cultivava um estilo simultaneamente sedutor, frio e distante, e tinha a pulsão do controlo social do banco, das empresas do grupo e, bem entendido, dos políticos que ao longo de três décadas financiou e telecomandou nos vários partidos do chamado arco da governação... 

Ele é o drama, o centro do furacão, o personagem das personagens, o que vetava a vontade dos outros anos a fio, o que mandava e humilhava, o que promovia, colocava a pergunta e dava a resposta. Definia a circunstância. Ele mandava em todas a réplicas, controlava o jogo de influências recíprocas que lhe permitiam fazer os melhores negócios, por regra ruinosos para o erário público, ou seja, para todos os portugueses. O exemplo da aquisição dos submarinos aos alemães, decisão tomada por Paulo Portas, revelou uma dessas dimensões mais ruinosas para o Estado promovida pelo tráfico de influências tutelado pelo ex-DDT e pelo grupo que representava: o GES/BES. 

O que faz hoje este homem de 70 anos, de gel no cabelo e com uma serenidade perturbante? Culpa terceiros pela desbunda do banco de que era - mais do que responsável - senhor absoluto. Culpa o Governador do BdP, culpa veladamente o contabilista Machado (que protege estrategicamente!!), culpa Álvaro Sobrinho do BESA e, não menos importante, refugia-se no segredo de justiça, o que lhe confere um escudo protector que permite ao ex-responsável Disto Tudo apenas contar 15% da verdade em directo para o circo da tvs.

Foi este o homem que se viu hoje na AR: impávido e sereno, resiliente, presunçoso, sem vergonha e julgando-se acima das leis e dos homens do seu tempo. Inúmeras vezes utilizou os truques da oratória (e o elogio fácil, até pouco sofisticado para com Abreu Amorim do PSD - que nunca foi advogado brilhante) para condicionar algumas perguntas por parte dos deputados que o inquiriram. De modo que foi tudo by the book, nada surpreendeu, tudo seguiu o domínio da previsibilidade. Os culpados, segundo Ricardo, foram identificados, o dinheiro migrou paras as mãos de credores e não para as mãos da família ou dos colaboradores directos do banco. E ele, Ricardo, só não se demitiu antes porque o Governador do BdP não solicitou a sua saída!!!

Aliás, Ricardo Salgado não passa dum "indigente", já que nenhum bem tem em seu nome!!! O que é bem revelador do carácter deste homem...

Ricardo Salgado não devia subestimar as outras pessoas, nem a sua inteligência e o gozo, especialmente num contexto de ruptura financeira em que deixou milhares de clientes - pessoais e institucionais - também deveria conhecer alguns limites.


Salgado falsificou contas, ou mandou falsificá-las em ordem a iludir o BdP, os clientes, os accionistas e a sociedade em geral que acreditava no banco. Contabilidades criativas (manipuladas) são crime e devem ser punidas severamente. É estranho que a troika não detectasse estas manipulações nas contas do BES, ou melhor, nem sequer teve acesso a essa possibilidade de auditoria, e essa opacidade terá sido a forma que o ex-DDT encontrou para adiar a venda de dezenas de empresas do sector não financeiro, que geravam receitas, e que consolidavam imensa influência ao GES/BES. 

Em síntese (e em termos gerais): o crime é explicado, em larga medida, pela paixão. O homem cede à tentação do furto ou da violência, movido por um ímpeto que lhe domina o espírito. Segundo Jousse - Todos os crimes têm origem na concupiscência ou na cólera. É da cólera que nascem as injúrias, as agressões, os homicídios, as traições, os envenenamentos, as calúnias, as conspirações, os subornos e todos os crimes que prejudicam o próximo; e é a concupiscência que dá lugar à embriaguez, ao adultério, à violação, à sedução, ao furto, à simonia e a todos os crimes que satisfazem os sentidos, a avareza ou a ambição.

Alguns homens, por terem tido sempre a faculdade de mandar e de serem obedecidos, nunca conheceram a resistência ao mando, nunca foram verdadeiramente contrariados, e, é, talvez, por não terem cultivado a virtude que as paixões como a cólera, a inveja, a avareza e a ganância levam a melhor sobre a razão, conduzindo ao crime.

Se o sistema de justiça metesse hoje Ricardo Salgado na cadeia, como fez com o ex-PM, talvez dum modo desproporcional e excessivo, e numa ânsia extrema de humilhar gratuitamente, amanhã Portugal assistiria a que metade do escol dirigente dos últimos 30 anos - tivesse o mesmo destino, e talvez não houvesse cadeias que bastassem para guardar os segredos que hoje só Ricardo Salgado reserva na sua memória. 

E para memória futura, não vá o diabo tecê-las...

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