quinta-feira

Novos conflitos sociais em Portugal

O epifenómeno gerado no Dia Internacional do trabalhador, lançado pelo grupo Jerónimo Martins dono do Pingo Doce, deve ser lido para além da espuma dos dias, ou seja, deve ser inscrito numa conflitualidade mais vasta que está em curso em Portugal e que vai, silenciosa e lentamente, fazendo a sua carreira, mas em moldes diferentes dos tipos de conflitos, mobilizações e revoluções do passado. Aliás, na reflexão abaixo, o sociólogo André Freire pergunta-se por que razão, apesar das maldades conhecidas que este Gov - indo muito além da troika - tem provocado na vida dos portugueses, não se estruturou já um movimento de contestação social mais vasto entre nós. É uma questão legítima e de difícil resposta.

Contudo, essa equação permite-nos olhar além da linha do horizonte e ver o que se esconde para lá dela. E para fazer esse exercício é útil recordar que, por exemplo, a mobilização operária em França do séc. XX, designadamente as greves, se fizeram através de redes de solidariedade e de interconhecimento, a mobilização desenvolvia-se segundo um registo de quase-unanimidade, seja através de laços comunitários forjados em inúmeros locais e circunstâncias, por regra tecidos na adversidade, seja na relação - sempre conflitual - e com conotação política nas lutas dos operários contra o patronato, ambos confrontando-se porque tinham duas visões opostas do mundo. 

O que nós vimos no Dia do trabalhador nas lojas Pingo Doce foi uma coisa diversa: uma convergência de posições entre os consumidores desenfreados e um empresariado que quer vender tudo ao mais baixo preço e no espaço de tempo mais curto para realizar um brutal encaixe financeiro. 

Acresce que os conflitos dos séc. XIX e XX já não têm paralelo com os novos conflitos sociais, até pela postura defensiva do Estado na sua relação (de intermediação) com o empresariado. Em parte, porque temos, porventura, o Governo mais neoliberal desde o 25 de Abril, impondo quase a receita do Consenso de Washington (de privatização na educação, saúde, corte de salários, liberalização da legislação laboral e o mais), destruindo o que resta duma economia social. Por outro lado, esse mesmo Estado está hoje sob o efeito brutal da espada de damócles da globalização económica e financeira que, na prática, permite às empresas multinacionais e aos agentes económicos em geral, deslocalizar as suas instalações, know-how e capitais para se instalarem em países com sistemas económicos e fiscais mais competitivos e atractivos, o que permite margens de retorno mais rápidas para os investimentos realizados. 

Neste capítulo, o Estado perdeu boa parte da sua função mediadora que outrora mantinha nas relações com o mundo empresarial, para aí encontrar soluções de compromisso que, hoje, como se vê pelas intenções da UGT, são frágeis (apesar desta ter assinado um acordo com o Gov que agora diz querer rasgar). 

Na prática, e perante as dificuldades, e isto responde em parte à inexistência de um verdadeiro e sólido movimento de contestação social em Portugal com reflexos marcadamente políticos, como se verifica noutros países europeus em dificuldades. Em resultado do facto de os operários e funcionários em Portugal não conseguirem desenvolver estratégias anti-estatais consistentes seguidas de incursões anarco-sindicalistas, mitigadas por um marxismo fortemente impregnado de um blanquismo revolucionário, que, por sua vez, se traduz em estratégias mais ou menos violentas de tomada do poder por um determinado partido, pedindo, depois, e de forma algo paradoxal, protecção a esse mesmo Estado no conflito que os opõe ao patronato - que é igualmente hostil ao Estado e aos trabalhadores. 

Ora, também aqui esta triangulação de relações (Estado-operários/sindicalismo-patronato) mudou substancialmente, dado que, actualmente, e à luz dos cortes e esbulhos sucessivos praticados em Portugal neste último ano, o Estado tornou-se no próprio adversário do "trabalhador-cidadão-contribuinte" perdendo, por isso, grande parte da sua autoridade e legitimidade que tinha quando era guardião do Estado com alguma economia social. Ou seja, o Estado perdeu o seu estatuto de pessoa de bem para passar a ser um mal-feitor, e é hoje visto pela generalidade da população como a figura do "Estado-ladrão", uma sub-categoria do cobrador-do-fraque que anda por aí nas cobranças difíceis, recorrendo à chantagem, à manipulação, à pressão burocrático-administrativa e a um conjunto de mecanismos que visam sempre atingir os segmentos mais fracos e vulneráveis da população. 

As velhas greves que animaram milhares de trabalhadores e enfrentaram o Estado e o patronato com sucesso é, hoje, um fenómeno restrito e dura pouco tempo. Até porque hoje as relações entre sindicatos e partidos implicam, a maior parte das vezes, ou uma separação (aparente, vide a relação da CGTP-In com o PCP) ou a relação da UGT com o PS, esta, apesar de tudo, mais independente dada a natureza pluralista do sindicato e do partido do Largo do Rato. Mas essa relação - Estado-sindicato - também pode ser de subordinação, ou, pelo menos, encerra um controle dos sindicatos pelos partidos políticos de esquerda. Aqui, e tomando a realidade política portuguesa como ponto de partida, o BE está isolado, na medida em que é o único partido político com representação parlamentar que não dispõe de nenhum sindicato que respalde socialmente a sua posição política, dentro e fora do Parlamento. 

Já que o PCP tem a CGTP, o PS, nos momentos de aperto, tem um aliado na UGT, o PSD tem os TSD e o CDS é, ele próprio, um grupo de empresários que defende o patronato por regra, apesar de mitigar isso com a doutrina social da igreja, o que fica sempre bem nos meios católicos e ajuda a consolidar e a alargar as bases de apoio sociológico de pendor ultra-conservador. 

Durante muito tempo, no Reino Unido, e ao invés do que acima referimos, a sociedade tinha no Estado um papel mais apagado, deixando frente a frente os operários com os patrões. Pelo que as greves no RU estavam destituídas de qualquer dimensão explicitamente política, e o conflito económico não leva consigo um conflito político, como ocorre hoje na generalidade dos países europeus, muitos deles intervencionados pela Troika. Daí que no RU seja o sindicato a controlar o partido e a impor-lhe uma estratégia de participação. Aliás, é histórico o peso do trade-unionismo que não se manifesta como uma ideologia conflitual, o que é bem aceite por todos na monarquia britânica. 

Nos EUA, seguindo esta sociologia comparada dos conflitos sociais com o Estado e o patronato, as lutas sociais assumem uma outra natureza, já que aí a mobilidade individual e o mito darwinista da sobrevivência dos melhores serviu de base à ideologia nacional: o individualismo da classe operária impele cada um dos seus membros à maximização dos seus próprios interesses, além da enorme mobilidade territorial que o norte-americano tem e faz dele um ser sem grande espírito e sentimento de consciência de classe. 

Em Portugal, curiosamente, não obstante algumas arremetidas sem grandes sequências, como o Movimento 12 de Março, parece estar a singrar o culto do salve-se quem puder, a ideia assente na filosofia - o último que vier que apague a luz. E é essa atomização, esse comportamento granular entre nós que nos impede de organizar a acção colectiva para dinamizar o reclamado movimento de contestação social em Portugal. 

Em tese, isto explicará duas coisas aqui estranhamente ligadas: a ausência de socialismo nos EUA, já que o protestantismo fomenta a ascensão social e o êxito do indivíduo, descentrando-o depois para as lutas sociais colectivas, seja contra o Estado, seja contra o patronato; em Portugal, mercê do reconhecimento de que o Estado passou a ser um adversário que apenas existe para cobrar impostos e cercear dos direitos, liberdade e garantias - as pessoas começam a desenvolver um individualismo perigoso, e que a médio termo pode apoiar-se em ideologias radicais e fanáticas com base nas quais certos partidos emergem, para passar uma mensagem fundamentalista ou xenófoba que, no limite, é favorável à criação de regimes ditatoriais. Veja-se o caso da China, que vive em pleno sistema capitalista, mas o seu sistema político não permite liberdades políticas, cívicas e de expressão pluralista. 

A escapatória para estas tensões entre Estado, operários e patronato foi encontrada na presença de mecanismos de integração e de representação dos diversos interesses sociais, entre os quais os do patronato e das classes operárias, que passaram a integrar instituições politico-administrativas, do género - Conselhos de Concertação Social. Este fenómeno foi classificado por P. Schmitter de corporativismo, e contribuiu para diminuir a intensidade dos conflitos sociais que estão em gestação em Portugal. Ainda que, de forma aparente, aquele rebanho humano racionalizado pelas políticas comerciais do grupo Jerónimo Martins escondam mais do que revelem do que verdadeiramente se está a incubar nas relações sociais em Portugal. 

Aparentemente, esse corporativismo permite aos diversos representantes dos grupos em conflito participarem, uns com os outros, na execução da política económica geral do país, no âmbito dos poderes públicos. Todavia, e ao contrário do Estado de abundância em que nos encontramos - em que as políticas (re)distributivas permitiam maximizar os ganhos de muitos que, assim, preferiam evitar a via do conflito em benefício de vantagens pessoais/institucionais/corporativas - aquele corporativismo tem um impacto negativo na democracia liberal. Ou seja, há uma diminuição da legitimidade da acção tradicional dos partidos e dos sindicatos, o que atinge os mecanismos clássicos de representação democrática. 


Na prática, isto significa que as lutas sindicais, industriais/patronato e de índole politico-partidária tendem a recuar, já que os respectivos mandatários  desses três elementos da relação, que agem supostamente em nome do bem comum que falava Aristóteles, passam a controlar (sem intermediação dos eleitorados) as suas bases de apoio e, ao transmitirem as suas exigências, beneficiam, simultaneamente, de retribuições específicas, o que faz com que aquelas dimensões do conflito social clássico percam relevância ou intensidade estratégica no interior das sociedades. Embora esta situação não seja taxativa, e cada sociedade segue sempre uma trajectória conflitual e de cooperação específica. 

O problema é que em Portugal não existe uma única ideia directora que confira credibilidade, esperança e destino aos portugueses, e é também essa ausência de desígnio nacional que hoje leva os milhões de portugueses a pensar que, além de estarem a ser sistematicamente esbulhados na sua carteira e nos seus direitos sociais, estão também a ser enganados no plano superior da direcção do Estado. 

Ou seja, estão a ser duplamente enganados, e isto é uma tragédia em Portugal. 

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