sexta-feira

Tempestades - por António Vitorino -

Uma das consequências mais comuns dos períodos de crise consiste no exacerbamento das identidades de grupo.dn
As incertezas e angústias sobre um quotidiano penoso e as dúvidas e inseguranças sobre o futuro provável produzem, em regra, tentações proteccionistas e reacções de hostilidade perante o estrangeiro, perante os que são diferentes do grupo que se sente instável ou ameaçado.
No espaço de uma semana, a chanceler alemã, Angela Merkel, alertou para os perigos do proteccionismo e elegeu a conclusão das negociações do comércio internacional como a sua prioridade na cena internacional, ao mesmo tempo que decretou a "morte do multiculturalismo" na Alemanha, reportando-se especificamente às dificuldades de integração dos muçulmanos (em especial os de origem turca) na sociedade alemã.
Contraditório? Aparentemente sim, embora seja claro que Angela Merkel, nas suas intervenções, se dirigia a audiências distintas: sobre o proteccionismo falava para os seus parceiros na cena internacional e sobre a imigração visava, sobretudo, a sua opinião pública nacional.
Sabe-se que a Alemanha tem tido um percurso difícil na definição da sua identidade face ao fenómeno migratório. Até há sete anos, a doutrina oficial era a de que a Alemanha não era um país de destino de imigrantes. Os estrangeiros não comunitários eram apenas "trabalhadores convidados" (Gestarbeiter). Mesmo perante a evidência de que a mais relevante das comunidades migrantes presentes no seu território, a de origem turca, já tinha chegado à terceira geração...
Depois de uma limitada alteração da respectiva lei da nacionalidade, permitindo, em certas condições, o acesso à cidadania alemã plena dos descendentes de imigrantes já nascidos na Alemanha, foi sendo progressivamente aceite que não havia de facto, neste domínio, nenhuma "excepção alemã". Todos os países europeus se tornaram, nos últimos dez a quinze anos, países de destino de fluxos migratórios.
A proclamação, feita na semana passada, da "morte do multiculturalismo" constitui, pois, o reconhecimento da falência daquela política de negação da evidência e o efeito pernicioso da ausência (ou insuficiência) das políticas públicas de integração dos imigrantes na sociedade alemã.
Contudo, aquilo que bem poderia ser uma autocrítica tardia mas, sem dúvida, necessária foi apresentada num tom e envolta numa retórica que constitui a mais grave cedência de um chanceler alemão às tentações populistas nas últimas décadas.
As concessões dos partidos ditos do mainstream à pressão populista, no espaço europeu, não são, infelizmente, inéditas.
Desde há mais de dez anos que os governos liberais dinamarqueses dependem do apoio parlamentar do Partido do Povo Dinamarquês, um partido anti-imigração, que tem influenciado decisivamente as políticas daquele país ao arrepio do que havia sido sempre a tradição nórdica.
A instabilidade política na Holanda tem estado ciclicamente associada à emergência de partidos populistas e xenófobos, culminando no actual governo, em que liberais e democratas-cristãos dependem do apoio de um desses partidos, liderado por um personagem controverso, que responde perante a justiça por incitamento ao ódio rácico, e que preconiza a expulsão de todos os muçulmanos da Holanda.
Na própria França, a retórica do Presidente Sarkozy sobre a imigração permitiu à direita francesa clássica esvaziar o principal tema de combate da Frente Nacional de Le Pen, pagando um preço que esteve bem patente nos acontecimentos deste Verão sobre o caso das expulsões de ciganos.
Também na Bélgica, o impasse na formação de um governo, que dura há quase seis meses, resulta do peso decisivo no cenário político de um partido flamengo de clara inspiração populista.
E até na tradicionalmente tolerante Suécia as últimas eleições colocaram numa posição charneira um partido xenófobo e racista que surge do nada e ao arrepio das mais sólidas credenciais de integração de que há décadas se ufanam os suecos.
De igual modo, em Itália, o Governo de Berlusconi está hoje totalmente dependente do apoio da Liga Norte, movimento político de clara inspiração xenófoba e racista.
Este panorama preocupante revela uma tendência que convém não só não subestimar mas sobretudo contrariar enquanto é tempo. Porque quem semeia ventos não pode depois dizer que não sabia o que acabará por colher!
Obs: À velha "vingança das nações", que falava Alain Minc, esse famoso e talentoso engenheiro de minas, que dirigia contra alguns Estados e ex-Impérios, sucede-se, doravante, à vingança dos autóctones contra os estrangeiros, em muitos países desta Europa miserável presidida por Barroso e teleguiada por Merkel e Sarkosi e alguns bancos poderosos europeus.
É a única forma politicamente organizada para, aparentemente, controlar sectores da economia que se pretendem protegidos, e, ao mesmo tempo, de colocar os partidos conservadores e ultra-conservadores no poder, e estando no coqpit do aparelho de Estado são mais facilmente aprovadas leis de forte controlo e de condicionamento à imigração na generalidade dos países europeus, como sugere lucidamente António Vitorino, de resto uma área - a imigração - em que é manifestamente uma autoridade, como revelou a compilação interessante vertida no livro que o mesmo AV coordenou - Immigration: Opportunity or Threat, e cujas recomendações tiveram lugar da Fundação Caloust Gulbenkian, em 2007.
Felizmente, ainda não podemos estender essa teoria da xenofobia aos partidos mais à direita em Portugal, de que o principal porta-voz, ainda que de forma moderada, tem sido o cds/pp, mas não é marginal a posição gradualista que prevê quotas à entrada de imigrantes no nosso país, já que a economia ao não crescer o esperado conhece limites sérios, ou mais graves, caso esses quotas não se estabelecessem.
O reverso desta moeda é que países como Portugal precisam dessa mão-de-obra, considerada dura e pouco qualificada para construir estradas, pontes e shoppings, fazer limpezas e assegurar serviços na área da restauração que são serviços rejeitados pelos nacionais. Além do nosso envelhecimento demográfico, o que nos torna dependentes desse "sangue novo" para repor a taxa dos nascimentos. Já para não falar nos descontos feitos à Segurança Social realizados por esses imigrantes que ajudam a financiar o sistema que acaba por beneficiar o conjunto da população. De modo que se trata dum trade-of.
Resta saber se o risco de insegurança acrescida por força de termos de conviver com pessoas oriundas de outras nacionalidades constitui uma compensação francamente superior ao regresso da velha política das portas-fechadas, que a Europa hoje tem dificuldade em sustentar, ainda que a tendência de crise e de recessão económica conduza as sociedades europeias a esse resultado.
Na prática, esta nova relação em toda a Europa, por um lado, confirma a perda dos poderes tradicionais do Estado nacional e, por outro, o envelhecimento demográfico das sociedades desenvolvidas, que se vão interrelacionar de um modo completamente imprevisto, mas inevitável. E é justamente quando o Estado-nação perde a sua capacidade para artificializar e manipular as condições de viabilidade e de sustentabilidade das actividades e relações sociais internas que vai ser chamado a honrar os compromissos assumidos com os dispositivos de segurança social que foram concebidos no quadro duma estrutura demográfica completamente diferente e da qual vai existir nestas sociedades na próxima década.
Esta relação é, ou será, tão ou mais importante ainda do que as questões da sustentabilidade ambiental, por se tornarem mais prementes e a exigir respostas mais atempadas por parte do Estado e das autoridades competentes.
Se alguma visibilidade a globalização emprestou às sociedades contemporâneas, esta universalização dos problemas da relação do Estado com os imigrantes - e da sua viabilidade e sustentabilidade entre as comunidades de destino, de que Portugal é um pólo importante, até pela nossa história e cultura e relações luso-africanas com os chamados PALOPs, veio permitir esta imediata comparabilidade das medidas para o sector, avaliando também a maior ou menor competitividade entre as diversas regiões da Europa.
Isto significa, que em lugar das tradicionais diferenciações mediante fronteiras e de nacionalização das normas político-administrativas, passamos a ter entre nós, europeus, novas desigualdades em função do pólos competitivos construídos em função da integração (ou não!!) dos imigrantes nas sociedades europeias, e não já entre capitais administrativas.
Também aqui a Europa tem em gestação um processo radicalmente novo, que empurra os decisores políticos europeus para fazer leis cautelosas, que sejam ao mesmo tempo protectoras dos interesses nacionais e promotoras duma eficiente integração e multiculturalização, ainda que os apoios sociológicos no tecido conjuntivo desta Europa (barrosiana e em decadência) aponte caminhos e propostas mais perigosos.
Vale-nos, porventura, o exemplo de Berlosconi ao ajudar jovens raparigas oriundas do Magreb...
Certamente, um estímulo à taxa de fecundidade interracioal e, no caso, inter-geracional. E a este respeito, pergunto-me quem são e quantos são os filhos de Berlusconi na Europa, e fora dela?!

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