terça-feira

O velho problema da MORTE

«O suicídio é a nossa maneira de dizer a Deus "Não me podes despedir, eu desisto!"» Bill Maher.
A morte, tal como a origem dos Ovnis, constitui para mim os dois maiores enigmas da vida. Não conhecemos grande coisa acerca de uma e de outra coisa, e é esse desconhecimento que nos leva a não dispor de instrumentos de aproximação a esses enigmas, por isso ficamos na mesma.
Enterramos os mortos quando estes deixam de viver e continuamos a viver até que outros digam o mesmo naqueles rituais de funeral onde se passa e vê de tudo: anedotas, carpideiras, meretrizes oportunistas que que não têm onde cair mortas a ficar com bens de terceiros, ou por testamento ou por outra manhozisse. Vê-se de tudo no negócio da morte, até os cangalheiros se aproveitam para vender serviços inflacionados, qual jogo de bolsa, pois sabem que estando os familiares fragilizados esse é o momento adequado para executarem o esbulho final. E o morto também já não acorda para poder reclamar..
Nos últimos dias partiram duas figuras públicas, um homem dá área do teatro e outro da área do jornalismo, ambos ainda relativamente novos. Os amigos, os familiares e todos aqueles que os conheciam, directa ou indirectamente, sofrem a sua partida mas, no essencial, a morte aleija porque pelas costas dos outros vemos o nosso próprio destino. Um destino feito do impensável, do indiscutível, do insondável que assiste a todos os nossos pensamentos, porque em caso algum conseguimos prever a nossa própria morte e em que circunstâncias ela poderá vir a ocorrer.
A morte é, assim, esse escuro na solidáo dos tempos que pode vir de mansinho ou pode ceifar abruptamente. Eu próprio numa década tive de fazer três funerais, pai e irmãos, e todas foram surpreendentes, pelo que o soco no estomago foi maior, além da média de idade ser francamente baixa, a rondar os 53 anos. Uma estatística típica dum país africano.
Mas algo sucede quando alguém nos morre que nos impele a reviver de novo. Com a morte ocorre como que um fenómeno de aparição em linha com uma revelação interior que se manifesta no nosso interior, mas como essa revelação aparece sempre envolta em mistério acabamos sempre por a temer e nunca a conseguir explicar, como os ovnis. Por um lado, ficamos alarmados com a morte, um alarme que em condições normais conduziria à acção; mas, por outro lado, acabamos por sucumbir à inacção, precisamente por desconhecer que medidas tomar e atalhos seguir para obviar o que desejamos evitar: o tal mistério.
Lá vamos recorrendo à arte, à filosofia, qual espécie de curso geral de preparação para a morte, a fim de ir arrumando numa prateleira mental esse negócio indizível que é a morte, mas quando chega a "hora H" - ficamos confinados a uma espécie de cobardia institucionalizada e ritualizada em que somos proibidos de dizer o que quer que seja ou de fazer algo que evite a tragédia, daí também a nossa pequenez humana. Estou até mesmo desconfiado que a emergência e força da filosofia deve-se, em boa medida, à existência certa da morte, como os impostos, e que a longo prazo, como diria o outro, estaremos todos mortos.
A humanidade passa a vida nisto, na esperança de que apareça um revelador da morte, mas aquilo que de melhor temos é um padre a debitar umas narrativas cheio de pressa porque daí a meia hora terá de ir enterrar outro para outra freguesia, e, não raro, engana-se no nome dos mortes a enterrar. Talvez ainda exista um tempo, a haver, em que as coisas possam ser mais previsíveis, dizíveis e menos misteriosas.
Ou seja, vivemos tentando dar visibilidade ao mistério da morte e o melhor que conseguimos é, apenas, contratar o cangalheiro para enterrar aqueles de quem gostamos. Ora, isto não comporta nenhum mistério, apenas despesa.
Por este andar, não temos alternativa senão assistir à nossa própria degradação, à tragédia que dia-a-dia vai somando pontos a favor da nossa própria morte, sem que ninguém meta uma cunha para a adiar ou abolir, e é com essa tragédia que teremos de viver infinita e absolutamente.
Talvez por isso temamos tanto a morte, não tanto por pena daqueles que partiram, mas, de facto, porque tememos a reacção à nossa própria finitude, já que isso é uma experiência singular que só o próprio pode vivenciar, e aqueles que já passaram por isso não regressam para contar como foi. Das duas uma: ou o passaporte para a morte é um mar de rosas, que nos faz ficar sem ideia de retorno; ou é um inferno que nos queima assim que lá entramos.
Mais uma vez o mistério a tapar-nos a lente da acção e a temermos aquilo que virá depois. Resta-nos aguardar essa finitude com as angústias possíveis. Em rigor, "ela" espera-nos de braços abertos, só não sabemos quando e em que condições para lá caminhamos, por isso o melhor é apostar no presente como se fosse uma eternidade.
Mas sempre podemos dizer que a morte não passa duma invenção e a vida uma cadeia sucessiva de simulações repleta de convenções. Até que o contrato expira...

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