Regresso a Camus
Hoje somos todos "Estrangeiros"...
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames." Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O Estrangeiro de Camus é um livro extraordinário. Reflecte, em parte, a dinâmica do nosso tempo político, económico e social. Espelha o absurdo a que chegámos. E porquê?
É simples: "na nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte". A fórmula pode generalizar-se a todos os campos do social ao político, passando pela esfera cultural e simbólica que, afinal, nos norteia a acção.
Para o autor, o seu herói, o Sr. Meursault, é condenado porque não joga o jogo. Sob este aspecto, ele é estrangeiro para a sociedade em que vive; ele vaga na borda, nos subúrbios de uma vida privada, solitária e sensual. Quantos milhares de portugueses se reconhecem nesta triste constatação!? Nesta lógica do absurdo, feita de ausências de sentido para a vida...
Talvez por isso muitos de nós se sintam verdadeiros pedaços de "entulho social" por, precisamente, não jogar o jogo. O jogo dos medíocres.. que esperam, que bajulam, que obedecem, que elogiam a mediocridade, que intrigam e se aliam uns aos outros sem nada terem em comum (salvo raiva e inimigos comuns, ao estilo das coligações negativas), que se deitam, que se prostituem, que inventam doenças para gerar compaixão no decisor e, assim, subir na escala da hierarquia social, para que esta se sinta alimentada e consiga reproduzir o velho ciclo de multiplicação do absurdo em que Portugal, hoje, caiu..
E o que é que sucede a quem não quer jogar o jogo?
A resposta é simples. Quem se recusa a mentir, perde e sai borda fora da sociedade.
Ainda assim vale a pena repensar Camus, agora que passou meio século da sua morte, o sentido para a vida, a nossa condição humana, continua miserável como sempre.
Hoje, mais do que nunca, apesar dos meios disponíveis, continuamos a coabitar com grandes absurdos e encontramos pouca finalidade para a vida, é como se tivéssemos projectos sem finalidade, como o seu mito de Sísifo o prova. À realização inicial sucede-se a ilusão, o regresso à estaca zero nesta condição em que nos é dado viver sob a lente do existencialismo (absurdo).
Hoje, mais do que nunca, importa recuperar e reformular o pensamento de Camus, para emprestar um sentido ao seu absurdo, uma cor ao seu existencalismo, conferir uma dimensão um pouco menos miserável e precária ao eterno que não conseguimos construir. Creio que Camus tentou viver uma vida generosa relativamente ao futuro, mas morreu muito movo, mas tentou dar tudo no seu presente. Hoje andamos todos a "comer para dentro da gaveta", como "o algarvio", por isso somos uns grandes miseráveis, somos uns grandes burros. O egoísmo e a melancolia tira-nos a capacidade de acreditar, daí, também, o absurdo em que vivemos. Relembrar Camus é, sobretudo, sinalizar esses erros e vícios para fazer exactamente o contrário do algarvio... Para corrigir o absurdo, para redefinir as regras da existência.
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