sexta-feira

O Prémio Pessoa a D. Manuel Clemente. Por um Novo Pacto Social entre Estado-Sociedade-Igreja

O Prémio Pessoa atribuído hoje ao investigador, intelectual e bispo do Porto D. Manuel Clemente não poderia ter sido melhor escolhido, quer em razão do seu currículo e trajecto profissional, quer em razão da sua acção como intelectual e como homem da Igreja preocupado com os problemas do nosso tempo enquadrado por uma visão cristocentrica.
D. M. Clemente pensa e fala com propriedade, percebe-se que o que diz é resultado de uma reflexão amadurecida, e não um tiro no acaso e uma proclamação no escuro, e na Igreja em Portugal nem sempre é assim.
Consabidamente, nem sempre os homens da igreja entre nós reflectem uma doutrina, uma caridade apoiada num saber, e sem isso dificilmente se descobrem as verdadeiras causas da miséria e da pobreza em Portugal e para elas se identificam mecanismos legais, sociais, económicos, técnicos e culturais capazes de integrar quem, por uma razão ou outra, acabou por ficar de fora do comboio da integração social e, por essa razão, não faça parte do desenvolvimento activo da economia nacional. A Encíclica Caritas in Veritate do Sumo Pontífice Bento XVI sublinha essa preocupação.
Não se trata já, entre nós, de teorizar sobre o acesso à água, à cultura, à segurança alimentar, enfim, à retórica e à cacofonia habitual relativamente à narrativa da "globalização predatória" (R. Falk) que parece ter vindo para ficar, como o Toyota. De que nos vale teorizar a globalização e as suas vantagens se depois o Estado e o mercado - entre nós - não conseguem gerir os recursos, as vontades e as oportunidades que permitam a cada cidadão aceder a níveis de rendimento dignos na sociedade contemporânea?!
Isto revela, entre outras coisas, que o mercado, de per se, e já o historiador económico Karl Polanyi o escreveu logo após a II Guerra Mundial, se não for fortemente regulado (e humanizado), está sujeito a um tipo de distribuição da riqueza que em vez de reduzir as desigualdades sociais tende a agravá-las. E até a destruir o próprio mercado, que foi históricamente uma invenção política do Estado. Porquanto ele é incapaz de assegurar internamente formas de solidariedade, de equilíbrio e de confiança recíprocas que funcionem como um verdadeiro cimento social, que hoje, na prática, não existe.
Persiste, contudo, o perigo de o mercado ser fortemente “regulado” pelo Estado e a "emenda ser pior do que soneto", ou seja, que esse mesmo mercado acabe por ter uma função perversora nos domínios sociais onde era suposto actuar para corrigir desvios sociais que, não raro, degeneram em pobreza, miséria que, por seu turno, conduz largas faixas da nossa sociedade aos mais variados crimes nem sempre eficazmente combatidos pelas nossas forças de segurança. Fazendo, nesse caso, perigar a própria sociedade em todo o seu tecido conjuntivo.
Por outro lado, o Estado – enquanto instituição maior da sociedade e detentor dos recursos financeiros e logísticos da sociedade, também não consegue estimular o take-of da economia, reformar as instituições que ainda bloqueiam a modernização da sociedade, atrair Investimento Directo Estrangeiro (IDE), fixar empresas de qualidade, estimular a criação liquida de emprego, potenciar o consumo privado sem ser por recurso ao endividamento e ao crédito bancário (hoje mais dificultado), enfim, pôr em marcha os mecanismos geradores de crescimento, modernização e desenvolvimento.
A ser assim, o mercado não é de confiança e só premeia os "tubarões", as usual; o Estado, seu simétrico-negativo, deixou há muito de poder manipular os principais dispositivos financeiros, económicos e administrativos de que depende o desenvolvimento. Esta relação agravou-se com a nossa integração no espaço comunitário. Dito isto, parece caber à sociedade civil e às instituições da igreja, a assunção de um papel crescente na resolução dos problemas sociais mais prementes que o Estado e o mercado não conseguem atenuar.
Esta nova formulação no relacionamento inter-institucional entre Estado-Sociedade-Igreja - implica que, para haver um verdadeiro e efectivo desenvolvimento humano em Portugal que o Relatório do PNUD veio questionar, há que institucionalizar uma plataforma de negociações – que implica cedências de parte-a-parte – entre as instituições representativas do Estado-Sociedade-Igreja, desde que tenham, comprovadamente, uma finalidade social e uma contabilidade pública transparente e fiscalizável (accountability). Encontram-se nesta categoria funcional as IPSS, as misericórdias, as ONGs, as associações cívicas e de desenvolvimento e organizações conexas.
Estes podem ser, de facto, os novos actores capazes de por em marcha um esquema nacional de ajuda inteligente à assistência pública e privada, seja como forma de diminuir o sofrimento dos desvalidos, seja como forma se suprir as insuficiências do Estado e as falhas de mercado, como diria o Nobel da Economia, Joseph Stiglitz. Insuficiências do Estado e falhas de mercado que, doravante, seriam supridas por mais desenvolvimento, mais democracia, mais solidariedade e mais liberdade, quatro valores-guia hoje muito ausentes entre nós.
Qual é, então, a grande virtude de o Prémio Pessoa ter recaído, e bem, no bispo D. Manuel Clemente?
A meu ver, e além do valor intrínseco da personalidade em questão, é que este Prémio vem reforçar uma consciência social e uma dimensão ética que agora brota com mais força da igreja.
Este Prémio Pessoa já não é só de D. Clemente, pertence à igreja no seu conjunto, e como quem integra a igreja é cada um de nós, católicos e leigos, então, nesse caso, o Prémio de D. Clemente é um prémio do país, verdadeiramente democrático, reclamado por todos e por cada um de nós.
A esta luz, passamos a ter mais legitimidade quer para mobilizar a sociedade quer para reclamar um novo quadro de direitos sociais (adormecidos) e um por em prática um novo esquema de funcionamento institucional que racionalize a ajuda dessa grande máquina estatal, a fim de partilhar mais eficientemente o bolo resultante dos nossos impostos.
É por isso que urge estar atento à nova dinâmica social para reclamar do Estado, da sociedade civil e da igreja um conjunto de ideias, de direitos e de opções socioeconómicas que não façam aumentar de forma excessiva e moralmente inaceitável as já existentes desigualdades sociais, continuando-se a prosseguir no objectivo keynesiano do Pleno emprego, apesar disto ser mais uma miragem no séc. XXI, assim como o foi logo após a II-Guerra Mundial (1939-45), quando o economista John Meynard Keynes teorizou sobre o tema.
Mas o ser humano é assim mesmo, funciona por miragens, por impulsos, em função de utopias, e por umas e outras, com sorte, Jesus Cristo ainda desce à terra e é bem capaz de fazer um milagre neste novo Natal que se avizinha.
Nem que seja só para começarmos, definitavemente, a acreditarmos n'Ele. Amén.