Significados - por António Vitorino -
- Os referenciais históricos invocados variam cada vez mais em função da memória individual de cada um, in DN A Constituição Portuguesa consagra a idade mínima de trinta e cinco anos para se poder ser candidato a Presidente da República. Significa isto que, a partir do corrente ano, pode aspirar à suprema magistratura do País um português ou uma portuguesa que nasceu com o 25 de Abril de 1974. Atinge assim a plenitude dos direitos democráticos a primeira geração de portugueses integralmente formada no nosso regime democrático. Com o passar dos anos a comemoração do 25 de Abril foi-se tornando num ritual muito condicionado pelos temas do momento e pelas circunstâncias mais imediatas da nossa vida colectiva. Daí não tem que decorrer forçosamente a banalização do facto histórico em si mesmo considerado um acontecimento que pôs termo ao mais longo regime autoritário da Europa Ocidental. Mas torna-se hoje evidente que os referenciais históricos invocados variam cada vez mais em função da memória individual de cada um. Por isso, não surpreende que nesta data uns se revejam no acto libertador com a consciência ainda viva dos tempos anteriores à revolução, enquanto para outros a vivência em liberdade e em democracia seja tão natural como o ar que respiram. A vida política portuguesa foi suficientemente rica e também atribulada nestes trinta e cinco anos para que daquela data histórica se tenha uma visão única ou até uniforme. De igual modo os afectos, as emoções e as esperanças envolvidas pela invocação do 25 de Abril são muito diversificados na sociedade portuguesa actual. Com o distanciamento de uma geração de permeio, o 25 de Abril permitiu aos portugueses assistirem à queda do salazarismo, ao fim do regime colonial e à entrada na Europa comunitária, bem como à implosão do bloco comunista e à revolução tecnológica associada ao processo de globalização. O acumulado desta sucessão de acontecimentos torna ainda mais obsoleta a imagem do Portugal antes de Abril tão bem retratada na série televisiva que a RTP passa aos domingos à noite. Entre aqueles que ainda guardam uma recordação viva desses tempos nas suas próprias vivências e os que pela primeira vez contactam com uma realidade quotidiana que seguramente pensam muito mais distante do que o curto período histórico de trinta e cinco anos faria supor, o País tornado possível com o 25 de Abril gera naturalmente sentimentos e reacções muito diversificadas e até por vezes contraditórias. Mas a distância dos acontecimentos permite avaliar melhor o que foi e continua a ser o legado dessa viragem histórica tornada possível pelo Movimento dos Capitães. Claro que as esperanças desiludidas, as expectativas goradas, as agruras da crise presente deixam em muitos o travo amargo de alguma decepção e até frustração. Mas o enraizamento da liberdade e a vivência democrática, para além das insuficiências, das imperfeições, dos defeitos e das perversões do regime edificado nestes trinta e cinco anos, constituem o grande referencial fundamental da que ficou mundialmente conhecida como a Revolução dos Cravos. Os que viveram os tempos conturbados do processo revolucionário de 1974/75, os dramas humanos da descolonização, os exaltantes combates políticos e ideológicos dos primeiros anos da nossa democracia e a almejada entrada nas Comunidades Europeias em 1986 depois de longos oito anos de negociações, sabem bem o que para eles significou o golpe dos capitães, as forças e as tensões que libertou, os caminhos que abriu. Por contraste, aqueles que nasceram e cresceram já em democracia têm uma visão menos comprometida do significado histórico do dia 25 de Abril, tal é a naturalidade com que desfrutam da liberdade de expressão e de associação, do pluralismo democrático, da vivência no espaço alargado europeu. Mas essa aparente banalização da data histórica será provavelmente a melhor homenagem que se pode prestar todos os dias ao que o 25 de Abril significou para todos os portugueses. Para os portugueses de hoje e para as gerações vindouras. Obs: António Vitorino deixa-nos aqui uma leitura cruzada dessa transição do "antes" para o "depois". E nessa trajectória, creio que existem três grupos ou categorias de pessoas que pensam ou racionalizam o 25 de Abril de forma algo controversa: 1) os amantes e saudosistas do passado, em boa medida nutridos pela glória e grandeza do Império que já não há (uma minoria); 2) os optimistas que viram na Democracia, no Desenvolvimento e na Descolonização (3Ds)- o caminho para a Liberdade (a maioria); 3) e as novas gerações que ainda não conseguiram extrair dessa Liberdade e desse Desenvolvimento os seus verdadeiros benefícios e potencialidades para construir o futuro. E é aqui que as gerações vindouras, que o António sublinha e conclui a sua reflexão, estão preocupadas porque esta conjuntura económica (mundial, europeia e nacional) parece funcionar como a mais vil das ditaduras. Neste quadro em que vivemos, que é de aperto, o 25 de Abril deverá servir para os políticos - e demais agentes sociais e económicos de Portugal - inovarem e inventarem soluções para sairmos deste colete-de-forças em que contrariados entrámos.
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