sábado

Justiça do comunicado.

Vivemos num tempo em que pensávamos que na relação íntima entre o pensamento/teoria política e a acção política reinava a racionalidade das decisões. Ora, o caso Freeport como o caso Casa Pia, revelam dois abortos tecnico-funcionais em que o nosso aparelho de justiça, os seus mais altos titulares e tudo aquilo que gravita em seu redor, têm para oferecer aos contribuintes que lhes pagam os elevados salários, as mordomias quasi-medievais e uma arrogância canónica que em vez de denunciar conhecimento e sabedoria apenas destila ódio, sede de vingança e uma chocante distância entre os cidadãos que reclamam legitimamente por justiça e os homens da toga.
Não é já só aqui Sócrates que está em causa, mas todo aquele cidadão que viu a empresa prejudicada, uma pessoa que sofreu um dano pessoal ou um qualquer outro azar da vida acontecer, a justiça é sempre, ou quase sempre, má e demorada, ou seja, revela-se uma anti-justiça. O que contrasta com a modernidade do nosso tempo, centrado nas espectactivas da racionalidade potenciada pelas tecnologias da informação que hoje permitem acelerar processos e facilitar decisões.
Por conseguinte, o nosso tempo é, ou deveria ser, o tempo das ciências sociais, que compreendem esses processos, e, por essa via, dominam as forças da sociedade, em particular, as da esfera política. Cada problema social, e a justiça não é um "animal estranho" com estatuto à parte, é considerado resolúvel por uma solução racional, determinada segundo princípios de competência e especialização. Mas parece que entre a teoria e a praxis política, há um fosso intransponível, e as sociedades modernas sofrem com essa incerteza.
O exemplo da forma como funciona a justiça portuguesa é lamentável: temos actores judiciais, temos códigos, temos equipamentos e logística, e até temos um PGR e procuradores, mas os recursos humanos que eram suposto investigar os casos, analisar, cruzar dados, carrear informações para os processos, ouvir testemunhas, fazer provas periciais para, no final, julgar - arquivando processos, inocentando pessoas ou atribuir-lhes penas - nada disso parece funcionar. Ou seja, a justiça parece existir em Portugal para integrar uma narrativa onde nada se decide, tudo é apenas decoração de um palacete em retauro. Os instrumentos de prova ao seu dispôr não têm potência para inocentar ou imputar responsabilidades, é aí que se entra no limbo da justiça, o que é a pior forma de fazer justiça.
A forma como o Ministério Público tem actuado, e em particular o seu PGR, revelam bem essa impotência, esse desgoverno, essa politização da justiça nutrida a toque de caixa de neocorporativismos que ajustam contas entre si, com ou sem freeport com ou casa Pia, a nossa justiça é hoje uma peça de Banda Desenhada em qualquer parte do mundo. E é pena. Porque a Justiça é um órgão de soberania, e, como tal, deveria saber dar-se ao respeito e não comportar-se como um clã em guerra civil entre si para ver quem domina determinado território, quem passa a ser o feitor de certa coutada jurisdicional. E aqui os sindicalistas dos magistrados de serviço, ante a retracção táctica do sindicalista Clunius, comportam-se como tal.
Daqui resulta uma desgraça para aquele órgão de soberania, cujo PGR passou a governar a casa recorrendo ao comunicado. Que é neutralizado horas depois por mais umas declarações de sinal contrário por outro operador da classe. Parece que estamos em África (subsariana).
E como já estamos todos resignados, os comunicados do PGR - que visam meter ordem na casa, acabam por ser música celestial para os nossos ouvidos. E são estas vulnerabilidades formais, comuns às do consulado de Souto Moura, que desprestigiam o Ministério Público e este PGR em particular - por quem nunca dei um cêntimo e apenas tem paleio, mas, de facto, não goza de nenhuma autoridade funcional na corporação.
No tempo de Cunha Rodrigues, este tipo de informação e contra-informação não se passava, bem sei que a complexidade e a mediatização dos processos hoje é mais pesada. Mas Cunha Rodrigues tinha algo que Souto Moura e Pinto Monteiro somados hoje não têm: autoridade. Cunha Rodrigues impunha-se naturalmente por que tinha essa tal autoridade, i.é, era autor de conhecimento dos processos, levando todos os operadores de justiça a obedecerem às suas orientações porque viam nelas directrizes racionais e amigas da justiça - a que todos os operadores viam vantagem em subscrever.
Hoje, Pinto Monteiro serve comunicados ao país que ninguém leva a sério. E quando está mais lúcido, este "fala-barato" com sotaque até se dá ao luxo de pedir públicamente ao chefe das secretas que o ajude a descobrir a origem das fugas de informação violadoras do segredo de justiça, o que faz deste PGR um sério candidato ao 1º lugar do anedotário nacional da piada acerca da justiça.
Toda esta feira que se montou em torno do freeport, que acabou por colocar o MP e o PGR também no epicentro desta contra-informação, tem apenas uma conclusão: o nosso tempo, o nosso País, em matéria de justiça, converteu-se numa aventura de cegos, surdos e mudos. Ninguém se entende. Julgo mesmo que nem por mímica a comunicação seria possível neste contexto corporativo e de jogos de poder e de enunciados interpretativos da casta mais medieval que compõe a soberania do Estado a que chegámos.
E nesta aventura de cegos, qualque decisão é imediatamente contestada, qualquer comunicado é imediatamente neutralizado ou desfigurado, nada nem ninguém produz hoje um sentido ou uma ordem ante a anarquia global que reina nesta justicinha à portuguesa que emana alí da Rua da Escola Politécnica, ao Príncipe Real.
Nesta aventura de cegos não há orientações racionais, tudo é confuso, indeterminado, fazendo supôr que o Direito não é uma ciência, mas um jogo de sorte e azar que só funciona de vez em quando. Hoje, as emoções apoderaram-se das racionalizações, a politização de inúmeros magistrados reflecte a vergonha da corporação, muitos deles servem-se da terminologia do seu juridiquês para ocultar interesses politico-partidários que servem, e que são, neste caso, contra o actual PM e o conjunto do Governo socialista.
Mas amanhã farão exactamente o mesmo se o governo for do PSD. Quem diz amanhã, diz lá para 2014, bem entendido...
E o mais curioso, senão mesmo grave, é que a acção política aparece aqui refém destas lutas neocorporativas - cuja legitimidade fica muito aquém da legitimidade popular que tem todo o direito em exigir uma justiça digna, celere, transparente e justa.
Condições e qualidades hoje diáriamente espezinhadas por parte daqueles que deveriam ser os guardiões dessa mesma justiça, que, na realidade, não existe. Só já falta ouvirem-se tiros na zona do Príncipe Real para o País achar que a justiçasinha portuguesa seja renomeada de farwest.
E se assim é, se a justiça caíu neste caos, pergunto-me quem, doravante, arbitra aquele caos?? Quem guarda o guarda?!
Será que Belém vai ter de chamar novamente essa "peça processual" chamada Souto Moura... Cuja particularidade relativamente a Pinto Monteiro - é que aquele fazia os comunicados em andamento: eram os comunicados peripatéticos; o sr. Pinto imprime-os e envia-os para os media.
Entre um e outro venha o diabo e escolha...
Será que Cunha Rodrigues não poderia fazer mais uma perninha?!