terça-feira

Ao António Manso Pinheiro, ex-director da Editorial Estampa

Ao António Manso Pinheiro
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Quanto a Nun’Álvares, a sua avidez e ganância são atestadas por numerosos incidentes, conflitos e reclamações. Assim, por exemplo, quando D. João I lhe doou os direitos de Almada, Nun’Álvares achou pouco e tomou conta, por sua iniciativa e abuso (sancionado depois com uma demanda) dos esteiros de Arrentela e Corroios. Os seus rendimentos provenientes das doações feitas por D. João I foram avaliados em 16.000 dobras cruzadas. Mais de uma vez, quando resistiam à sua desmedida ganância e à dos seus apaniguados, Nun’Álvares ameaçava… abandonar. Lutar, lutava. Mas mais bem pago que o rei. Assim Nun’Álvares se tornou senhor de Barcelos, Braga e Guimarães, Montalegre e Chaves, Ourém e Porto de Mós, Alter do Chão e Sousel, Borba e Vila Viçosa, Estremoz e Arraiolos, Montemor-o-novo e Portel e ainda Almada, Évora-Monte, Monsaraz, Loulé e muitos e muitos outros reguengos e muitas e muitas outras rendas de muitos e muitos lugares. É de um homem destes que a Igreja Catolica fez um Santo, erguendo-lhe uma igreja em Lisboa aonde os pobres vão orar-lhe e pedir-lhe a sua intervenção junto de Deus…”
Álvaro Cunhal, “As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média”, ed. Estampa, 1975
Obs: Mão amiga faz-me chegar este fragmento duma obra de Cunhal, que também foi escritor, historiador, pintor. Embora não comungando com a matriz marxista que Cunhal faz da dinâmica histórica e dos processos políticos, admito que este fragmento encerre uma tonelada de verdade, pois entre a imagem pública que certos homens de Estado dão de si e a sua imagem na relação privada vai uma distância terrível.
Lembro-me dum ex-ministro de Salazar que transitou e sobreviveu à democracia - que na esfera pública parece um papa, até cita as encíclicas, Pierre Teillard de Chardin, mas na relação mais privada é um tipo "velhaco como as cobras" denunciando uma outra faceta mais escondida da sua personalidade.
Ainda se arrasta por aí... Isto ocorre com inúmeras pessoas, sejam ou não personalidades políticas, é um retrato da ambivalência da miserável condição humana a que, felizmente, muitas pessoas escapam por serem íntegras e estruturalmente boas.
Mas a oportunidade deste comentário meio sacana, serve, na essência, para evocar um homem de cultura, sincero, delicado, sensível e extremamente inteligente com quem tive o privilégio de privar e ser amigo: o ex-director da Editorial Estampa que partiu em 2007.
Por isso estas notas vão direitinhas para o António Manso Pinheiro - de quem guardo a melhor da saudade.
Não estou certo que não as possa ler, dada a incerteza do que está para lá do fio ténue da vida.