terça-feira

Nino Vieira pode ter sido assassinado por Brutus - de Shakespeare na obra Júlio César...

Nino Vieira fazia "parte da casa" desde a fundação da independência da antiga colónia portuguesa. Esteve inúmeras vezes no poder, ganhando aí apoios mas também ódios e rancores, daí que uma outra possibilidade - ligada à teoria das massas - possa ser considerava e integrada no puzzle para explicar o atentado bombista que o vitimou - naquilo que aqui designámos por golpe de Estado-mínimo, v.q., os fautores do crime não pretendiam usurpar o poder nem criar uma nova ordem ou legitimidade política para passarem eles a governar. Aqui o objectivo não foi de alteração de legitimidade política, mas sim decapitar as duas cúpulas do Estado: o PR e o Chefe de Estado Maior das FAs. Isso foi conseguido com o ataque bombista.
Mas pela teoria das massas se defende que um grupo, neste caso a população guineense, está ligado ao seu chefe como quem está ligado ao Pai, pois em África as ligações políticas e as fidelidades têm um cunho muito pessoal e não institucional como no Ocidente. Embora quando o carisma é forte essa ligação governante-governados seja igualmente forte em qualquer parte. Mas supondo que a população da Guiné-Bissau tinha em comum o mesmo objecto de identificação ao chefe, eles identificavam-se também horizontamente entre si. Portanto, o chefe é indispensável para a existência do grupo.
Todavia, uma vez que aqui entramos no domínio psicopolítico, o que levará os irmãos, de um momento para o outro, a rebelar-se, como um dia Freud explicou, e a matar o chefe? Penso que esta questão é oportuna colocar-se em África, sobretudo por causa da natureza tribal daquelas ligações políticas/pessoais - em que o Estado é fraco e os níveis de institucionalização e de formalização das relações, dos métodos e dos procedimentos de governança são ainda reduzidos.
Assim, podemos imaginar que a população, por razões sociais e económicas ou até de origem psicológica e pelo modo como o chefe tratava as diferentes étnias no território, privilegiando mais umas do que outras na afectação dos recursos, passou a odiar o seu chefe, rompendo com ele os laços que mantinham. Ou seja, aquela massa mais ou menos organizada de pessoas deixou de ser um grupo, ou melhor, passou a ser um grupo organizado com um único objectivo: matar o seu chefe.
No filme Brutti, Sporchi e Cattivi (feios, porcos e maus) - de Ettore Scola, esta realidade também se coloca...
Isto não é novo, pois nas famílias as relações entre filhos e pais por vezes degeneram e resolvem-se com este nível de violência. Na política pode suceder que um grupo de revolucionários, uma irmandade conjurada - pode decidir um novo objectivo para esse mesmo grupo. Na prática, a população guineense podia ter chegado à conclusão que estava a ser mal governada há décadas, e que Nino foi considerado como esse elemento nocivo que imperava aniquilar, porque se supunha que ele incarnava a própria origem do problema, e que uma vez dissolvido esse problema a comunidade poderia passar a viver melhor, com mais qualidade de vida. Portanto, só havia uma escapatória para o problema: matar o chefe.

Em certas famílias violentas - muitos irmãos já se conjuraram para matar o Pai a fim de libertar a Mãe do fardo dessa violência. E nem sempre a Justiça os puniu, antes os ilibou por se considerar que esse acto ocorreu em legítima defesa e nome do bem dessa comunidade.

Curiosamente, essa mudança foi bem representada por Shakespeare na sua obra Júlio César. Em muitos dos seguidores de César a admiração transformou-se em ódio, em rancor e em ressentimento. E de um momento para o outro eles querem a sua morte mas nenhum deles, só por si, tem a coragem de erguer o punhal. Hoje, pela dinâmica dos tempos, a coisa resolve-se à bomba...

Só conseguem isso quando formam um grupo que se alia em torno dum novo chefe, Brutus. Elaboram uma aideologia que justifica o seu gesto e juram lealdades entre si. Depois, assim que César é morto no senado, com as adagas ainda a fumegar de sangue, repetem o rito da conjuratio apertando as mãos ensaguentadas.

Aquela declaração do porta-voz da Guiné-Bissau, após o atentado, evocou-me esta história eficientemente narrada por Shakespeare na sua obra Júlio César. Só por coincidência, certamente...