quinta-feira

A palavra começada por L - por Rui Pena Pires -

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A palavra começada por L
26 de Novembro, 2008 por Rui Pena Pires
É usada pelos conservadores americanos para desqualificar os adversários democratas e, associada a “neo”, constitui, na Europa, o insulto preferido lançado pelos conservadores de esquerda contra os reformadores de esquerda. Refiro-me, claro, à palavra “liberal”. Que merece ser reabilitada, sobretudo à esquerda.
1. Em Setembro passado, o Policy Network promoveu, em Londres, com a colaboração da Fundação Friedrich Ebert, um debate sob o tema
«A more “liberal” social democracy?». A pergunta remete para uma questão simples de enunciar mas ideologicamente difícil de concretizar: como reforçar, na agenda social-democrata, os valores do liberalismo político e social sem enfraquecer a agenda da igualdade? O debate interessa a todos os socialistas e social-democratas, mesmo num país com o grau de desigualdade social que tem Portugal.
2. Um dos problemas nos debates entre esquerda e direita radica na tendência para atribuir a cada um daqueles termos um valor holista que eles ganham em não ter. De facto, a oposição esquerda-direita merece sobretudo ser pensada como remetendo para a oposição igualdade-desigualdade, podendo e devendo ser em seguida combinada com outras oposições para delimitar os contornos de diferentes programas políticos. Igualdade-desigualdade e não, com também foi corrente no passado, igualdade-liberdade. A liberdade e o seu contrário, o despotismo, não constituem património da direita nem da esquerda, dividindo ambos os campos.
3. Neste quadro, faz sentido a pergunta do debate londrino. E a minha resposta à pergunta resulta de uma preferência clara: um programa social-democrata progressista deverá ser, também, um programa liberal, que se distinga do programa liberal da direita por privilegiar a igualdade no campo em que esta entra em conflito com a liberdade, o mercado, mas que se distinga também da direita por ser radicalmente liberal nos campos político e social. No campo político, promovendo as liberdades civis e reformando o Estado para o tornar mais descentralizado; no campo social, promovendo a igualdade social dos indivíduos contra as discriminações que a limitam.
4. No que ao mercado se refere, um programa social-democrata liberal será sobretudo um programa orientado pela procura de mais, e mais eficaz, regulação estatal da economia e por mais, e mais eficaz, redistribuição e protecção social. No primeiro caso, para democratizar os mercados e os tornar mais eficientes e sustentáveis; no segundo, para conter as desigualdades e limitar significativamente os seus efeitos mais negativos.
5. A concretização da preferência liberal tem também consequências políticas e sociais. Por exemplo, uma agenda social-democrata mais liberal deverá, no plano político, aprofundar o estado social e, simultaneamente, incluir uma profunda descentralização dos seus aparelhos, assim os democratizando porque alargando a participação dos cidadãos no seu controlo. No plano social deverá incluir mudanças que permitam “livrar seres humanos de sofrimento inútil”, como referiu Zapatero no discurso com que apresentou aos deputados a proposta de alteração do Código Civil para remover os obstáculos ao casamento de pessoas do mesmo sexo.
6. Em rigor, uma agenda social-democrata mais liberal será também sempre uma agenda mais radical na promoção da igualdade socioeconómica, pois a plena fruição das potencialidades da liberdade individual requer uma maior individualização não só de direito mas também de facto. Porém, se a individualização requer recursos, que uma política redistributiva deve assegurar, requer também mais autonomia individual. Uma agenda social-democrata mais liberal deverá portanto desvalorizar as heranças e valorizar a mobilidade, opor à prisão das raízes a liberdade das escolhas.
7. Igualdade e escolha, regulação e mobilidade, solidariedade e descentralização são alguns dos termos a conciliar numa agenda social-democrata liberal.
Obs: Para meditar, sendo certo que o objectivo estratégico de qualquer Governo é assegurar a modernidade e o desenvolvimento sem descurar a componente da coesão social. Esta é, talvez, a "quadratura do círculo" mais complexa de resolver, sobretudo em conjuntura de crise e de recessão em que a conflitualidade social dispara em função da precariedade das relações laborais imposta por um mercado de trabalho cada vez mais incerto e volátil.