sexta-feira

MUNDO MELHOR - por António Vitorino -

Raras vezes umas eleições presidenciais americanas terão despertado tanto interesse no mundo inteiro. O que paradoxalmente sucede num momento em que os EUA se apresentam particularmente vulneráveis do ponto de vista económico e registam índices de popularidade como país bastante baixos.
Este interesse resulta, antes do mais, da convicção que todos temos de que o resultado das eleições acabará por ter um impacto significativo na nossa própria vida corrente.
Mas também da inequívoca novidade que trouxe a candidatura de Barak Obama. Novidade que resulta sobretudo de, pela primeira vez na história, um americano de cor poder ser eleito para a Casa Branca. E este aspecto simbólico tem por vezes obscurecido outros aspectos inovadores que a candidatura democrata trouxe para a ribalta da vida pública americana.
Não se trata apenas de Obama ser um orador eloquente e dar provas de uma notável autocontenção perante a campanha negativa que contra ele foi movida, acima dos padrões a que nos habituámos nas eleições americanas. A campanha presidencial democrata usou meios e adoptou métodos de construção de um movimento de opinião muito assente em redes de contacto ou de convergência de interesses individuais e sectoriais, beneficiando das novas tecnologias de informação e de comunicação, que recolocaram o cidadão individualmente considerado no centro do diálogo político com o próprio candidato.
Estes aspectos inovadores merecem ser estudados, na medida em que muito provavelmente farão escola e serão replicados noutros quadrantes geográficos.
O enquadramento multilateralista das suas posições políticas fundamentais, a persistência nas grandes linhas económicas que definiu mesmo antes da crise financeira e que foram reiteradas e ampliadas depois da queda de Wall Street, a clareza do seu discurso sobre os malefícios dos offshores não regulados (como nunca antes havia sido feito por qualquer outro candidato presidencial), a retoma de uma linha de orientação assente na redistribuição da riqueza pela via fiscal, tudo isto contribuiu para que afirmasse uma dimensão de estadista com um rumo e uma vontade que muito o beneficiou perante o comportamento errático do seu adversário.
Como chamava a atenção Timothy Garton Ash esta semana no Guardian, Obama foi-se construindo durante os dois anos que leva de campanha, e essa evolução foi presenciada e escrutinada pelos próprios eleitores em todos os seus momentos decisivos.
Claro que em democracia não há vencedores antecipados. E as sondagens ainda se apresentam, em aspectos críticos para a vitória, dentro de uma margem de erro que não permite dar nada por adquirido. Mas os sinais apontam para ser mais forte a probabilidade de uma vitória de Obama.
Nisso parecem acreditar, aliás, os defensores portugueses de John MacCain, que se consolam por antecipação, prevendo as desilusões que um Obama-Presidente dará aos seus defensores europeus (maioritariamente de esquerda).
Tendo manifestado há muito tempo (logo no começo das próprias primárias) a minha preferência por Obama, fi-lo sempre na certeza de que Obama seria eleito Presidente dos EUA... para defender os interesses americanos, claro está! E esses interesses, em vários momentos, não coincidirão com os interesses europeus.
Mas a diferença da eleição de Obama virá dos valores, não dos interesses. E é esse reencontro com valores que mais facilmente partilharão americanos e europeus que me motivam neste momento. Valores que uma certa retórica neoconservadora espezinhou e depreciou nestes últimos oito anos e em relação aos quais os europeus, na sua esmagadora maioria, permaneceram afectos.
É que para os europeus em geral, e para a esquerda europeia em particular, será sempre preferível que o Presidente dos EUA seja alguém que sabe que a América precisa do mundo. Já que a esquerda europeia que acredita na liberdade, no multilateralismo e na tolerância, por seu turno, é a esquerda que sabe que o mundo precisa de uma América predisposta ao diálogo e liderada por quem sente na sua própria condição humana o valor do respeito das diferenças!
Porque esse será, sem dúvida, um mundo melhor!

Obs: [...] "Pouco me importei. As baixas expectativas libertavam-me de preocupações, vários apoios providenciais deram novo fôlego à minha credibilidade e atirei-me à corrida com uma energia e alegria que pensava já ter perdido. Contratei quatro ajudantes, todos na casa dos vinte, inícios dos trinta, inteligentes e convenientemente baratos. Arranjámos um pequeno gabinete, fizemos o nosso papel timbrado, instalámos linhas de telefone e vários computadores. Passei quatro ou cinco horas por dia a telefonar aos principais doadores democratas e a tentar que me voltassem a ligar. Dei conferências de imprensa a que ninguém compareceu. Inscrevemo-nos na parada anual do Dia de São Patrício e ficámos no último lugar disponível, de modo que eu e os dez voluntários acabámos a desfilar meia dúzia de passos à frente dos camiões de limpeza das ruas, a acenar aos poucos retardatários que tinham ficado pelo caminho, enquanto os trabalhadores da limpeza varriam o lixo e arrancavam os autocolantes com trevos verdes dos postes. A maior parte do tempo, no entanto, andei a viajar, muitas vezes sozinho, de carro, primeiro de bairro em bairro, depois de condado em condado e de cidade em cidade, até chegar ao extremo do estado (...)", in B. Obama, A Audácia da Esperança, Casa das Letras, pág. 15.

  • Agora Barak Obama está quase a "montar" o Império (vindo do bairro-do-condado-da-cidade-e-do-estado - e cuja herança é pesada) - que se encontra como aqueles leões em fim de carreira nas paisagens do Seringheti - incapazes de patrulhar o território e suster a ameaça de leões inimigos mais novos e vigorosos, de procriar e de lutar pelo espaço vital, é este o momento - também vital - em que a América irá ter, pela 1ª vez na sua história, um negro (embora multicolor por dentro...) sentado no cadeirão da Sala Oval. E é (já) crença generalizada, naturalmente, que por um mundo melhor, como sinaliza - e bem - António Vitorino.