sábado

Dilema do Médico - por António Vitorino -

António Vitorino
jurista
A foto é nossa, mas podemos cedê-la aos pobres arquivos - bicentenários - do DN.
Entre os médicos conhecem-se duas doutrinas sobre como lidar com um doente que padece de uma doença grave.
Ao longo dos anos fui vendo que o dilema do médico também se aplica aos políticos.
Uns acham que uma situação de crise deve ser desde logo revelada em toda a sua extensão, outros entendem que se deve ir tomando consciência da crise de forma progressiva em função de casos exemplares.
Em ambos os casos convém também ter em linha de conta que os destinatários podem, eles próprios, ter formas distintas de preferir conhecer a doença.
Alguns doentes preferem o choque brutal, para melhor se pensarem e agirem em função da doença. Outros, pelo contrário, parecem às vezes mais chocados pela forma do anúncio do que pela própria gravidade da doença, optando mesmo por ignorar o seu estado de saúde ou por dele só tomarem consciência de forma faseada.
Na política, por via de regra, parte-se do princípio de que todos os destinatários são do segundo tipo.
O que provavelmente até é verdade.
Mas este estado das coisas só poderá ser alterado para futuro quando uma cidadania responsável assumir que será sempre melhor uma tomada de consciência da real dimensão dos problemas do que a crença em soluções mágicas que, no fundo, sabemos não virão a ter lugar.
Vem isto a propósito do aumento do custo da energia.
Podemos todos querer-nos convencer de que este aumento representa uma bolha especulativa que está na fase de insuflar e que, quando rebentar, tudo voltará à normalidade. Mas no fundo são tão inequívocos os sinais de que assim não será, que quanto mais depressa interiorizarmos que o preço da energia vai continuar a subir e quando estabilizar nunca será aos níveis do passado, tanto melhor!
Esta tomada de consciência não visa apenas a nossa própria estabilidade psicológica. Mas não nos podemos contentar com tão pouco.
É que diagnosticar com rigor a evolução do preço da energia é fundamental para definir como podemos e devemos reagir, em termos de comportamentos individuais e colectivos, ao novo mundo que vemos assim despontar.
Claro que nestes aumentos há uma dimensão especulativa e que é preocupante verificar que não há uma linha condutora clara de resposta a tal pressão. Convém compreender, aliás, que, nesse plano, só pode haver respostas partilhadas no plano internacional. E que se é verdade que a sua aplicação prática não seria isenta de dificuldades, a forma tímida como o tema é abordado nas instâncias internacionais é particularmente decepcionante.
Claro que um aumento da produção de petróleo poderia diminuir o fosso entre a procura e a oferta. Mas também sabemos que a produção não pode aumentar de modo significativo num curto espaço de tempo, que as reservas de petróleo são finitas e que muitas delas implicam custos de extracção e refinação acrescidos. Tudo conjugado, para além da falta de vontade dos produtores (que lucram com a alta do preço), há que ser realista e compreender que sempre seria uma resposta muito parcial à pressão continuada de aumento do consumo.
Claro que pode haver medidas tomadas pelos governos para mitigar o impacto da consolidação de preços tão elevados, mas os constrangimentos orçamentais actuais exigem que essas medidas sejam muito selectivas e devidamente explicadas. Uma "aterragem suave" no novo paradigma de energia cara não pode ter apenas em linha de conta a sustentabilidade económica e financeira de alguns sectores mais atingidos, mas também (e sobretudo) o seu efeito nas condições de vida das pessoas em geral - o interesse geral em nome do qual se governa em democracia!
No fundo, o que se pede é que o médico não esconda a gravidade da situação e nos explique bem qual a terapêutica que nos aconselha. Na política, em democracia, a cura depende sempre da vontade dos cidadãos.
Obs: Na década de 90 do séc. XX a Europa foi confrontada com o problema das vacas loucas, depois vieram a gripe das aves, hoje temos de saber lidar com o problema do consumo de energia, mormente dos derivados do petróleo que queimam o ambiente e as nossas carteiras. António Vitorino fala-nos aqui desse dilema que se coloca na relação médico-paciente, numa feliz metáfora, mas talvez não seja suficientemente elástica para explicar a "loucura" vertida pelos irlandeses ao chumbarem o tratado de Lisboa.
Quem sabe para a semana - se fale não já do dilema do médico, nem do dilema do prisioneiro (que nunca se falou), mas do "dilema do manicómio da Europa" que a Irlanda, talvez por escassa inteligência política das suas elites - que não fizeram o trabalho de casa (ao nível da comunicação política) deixando uma população mal informada (pelo menos, é o que consta das abordagens de rua pelas respostas dos irlandeses transmitidas pelos canais de tv internacionais) parece querer recuperar - o statu quo ante, ou seja, um ambiente de paralisia política, social e económica que se agravou à medida que se foi fazendo o alargamento da UE - hoje a carburar a 27.
Neste quadro, estou curioso para ver o que aqui AV nos deixa. Que metáfora ele irá encontrar para explicar esta nova forma de loucura política soprada da Irlanda que, esquizofrénicamente, tão bem aplicou os fundos comunitários, e, agora, revela-se o pior dos alunos, como diria o actual locatário de Belém.
O mundo está louco, ou então são os deuses que não tomaram os comprimidos...