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Da retórica à defesa europeia - por Francisco Sarsfield Cabral -

Da retórica à defesa europeia, in Público
A guerra do Afeganistão está a correr mal. Primeiro, a invasão americana do Iraque e o sarilho que se lhe seguiu desviaram meios militares do Afeganistão – onde decorre uma guerra apoiada pela ONU e inteiramente justificada, ao contrário do que acontece no Iraque.
Depois, a maioria dos aliados europeus que têm tropas no Afeganistão não só mantém ali contingentes limitados como não permite que os seus soldados operem nas zonas mais perigosas nem em missões de combate. Daí a satisfação com que os EUA receberam a promessa de Sarkozy de enviar soldados adicionais para o Afeganistão.
Logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001 os aliados dos EUA na NATO tomaram uma iniciativa inédita: invocando o art. 5º do tratado da Aliança Atlântica (que considera o ataque a um dos seus membros um ataque a todos), ofereceram-se para ajudar os americanos na guerra aos taliban que formavam terroristas no Afeganistão. Não, obrigado, foi então a resposta de Washington.
Muita coisa mudou entretanto. Os americanos confrontam-se agora com os limites do seu poder militar. O exército dos EUA está a operar à beira do esgotamento das suas capacidades humanas. Foi exposta a falácia da superioridade da guerra tecnológica, com poucos efectivos, defendida pelo antigo secretário da Defesa, Rumsfeld (e sempre denunciada por McCain). Posta em causa a norma de os EUA serem capazes de travar duas guerras simultâneas, Bush abandonou a atitude unilateral de que os neo-conservadores tanto gostavam e passou a pedir a colaboração dos aliados, a começar pelos da NATO.
Na cimeira de Bucareste os EUA abandonaram a sua tradicional reserva face a uma defesa europeia autónoma, que receavam viesse a enfraquecer a NATO. Em contrapartida, Sarkozy anunciou o regresso da França à estrutura militar da NATO, que de Gaulle abandonara em 1966. Lembrou Teresa de Sousa no PÚBLICO do passado dia 4 que Chirac prometera o mesmo em 1997, mas que a oposição de Clinton à defesa europeia liquidou a iniciativa. Agora, afirma Bush que “construir uma Aliança forte requer uma forte capacidade de defesa europeia”.
Mais importante do que a viragem de Bush é o estado da opinião pública americana. Por causa do Iraque e do Afeganistão, os americanos encaram hoje com maus olhos quaisquer iniciativas militares fora do país. É um regresso à tendência isolacionista, que faz parte do código genético dos EUA e que já se manifesta em força no proteccionismo económico.
Chegou, então, a hora da defesa europeia? Seria excelente, até porque a mudança de presidente na América não fará desaparecer por milagre as actuais ameaças, do terrorismo à proliferação nuclear, passando pela instabilidade no Médio Oriente. E o Tratado de Lisboa consagra um Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, com assento no Conselho e na Comissão Europeia.
Infelizmente, não se vislumbra uma defesa europeia que passe da retórica. Com poucas excepções (como a Grã-Bretanha) não existe na União Europeia vontade política de combater quando necessário, nem de investir num dispositivo militar credível, nomeadamente do ponto de vista logístico – até para meras intervenções de prevenção de conflitos e manutenção da paz.
Os EUA gastam 4 % do seu PIB na defesa. Na UE (com um PIB superior ao americano) só quatro países chegam aos 2 % : Grã-Bretanha, França, Grécia e Bulgária. Os europeus não só gastam pouco como gastam mal, duplicando despesas. Os países europeus da NATO têm quatro modelos diferentes de tanques; os americanos apenas um. Os europeus operam com 16 veículos blindados, os americanos com três. E a Europa possui 11 tipos de fragatas, contra um dos EUA. É mais cómodo e mais barato viver à sombra do poderio militar americano, ainda que dizendo mal dos EUA.
Com um novo presidente americano, forçosamente mais aberto à cooperação com os aliados, vai ser pedido aos europeus um mais sério empenhamento militar. Ora, até aqui os europeus têm-se escondido atrás da impopularidade do Presidente G. W. Bush para evitarem essa maçada, como sugeriu Henry Kissinger numa entrevista ao Der Spiegel. Sem Bush, acabam as desculpas. Se querem ser levados a sério, os europeus não se podem furtar às suas responsabilidades militares. A retórica não chega.
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista
Sugestão de destaques: Depois de Bush, cessam as desculpas europeias na defesa Não existe vontade política europeia de combater quando necessário nem de investir num dispositivo militar credível, até para meras intervenções de paz.

Obs: Creio que o Francisco interpreta bem a letra o espírito do Tratado de Lisboa, mas, sobretudo, põe a nú uma dupla contradição que paira sobre os dois lados do Atlântico: a contradição de G.W.Bush em relação ao apoio de defesa da UE e, por outro lado, a incapacidade congénita em os países do Velho Continente afectarem 4% do seu magro PIB no sector da Segurança & Defesa, sobretudo numa conjuntura económica e social problemática, talvez a pior desde a II Guerra Mundial - com o desemprego a pairar e os princípios de John Meynard Keynes a aguardar aplicação. Veremos, pois, como a Europa se irá entender com Barack Obama - e a economia europeia e norte-americana reagem às crises mais do que conjunturais que nos últimos anos fustigam os dois lados do Atlântico.

Enfim, nunca como hoje as questões da Segurança & Defesa foram tão íntimas e dependentes das questões ligadas ao crescimento e desenvolvimento económico das economias europeia e norte-americana. Aqui, o que sucede numa esfera de acção influencia sobremaneira aquilo que se faz (ou pode fazer) na outra esfera de acção - no conjunto das bolas de bilhar da geopolítica do mundo contemporâneo.