segunda-feira

Pessimismo americano - por Francisco Sarsfield Cabral -

Pessimismo americano, in Público
Amanhã haverá eleições primárias para escolher candidatos presidenciais em 22 Estados americanos. Hillary ou Obama? MacCain ou Romney? Há 80 anos que não eram tão imprevisíveis os resultados das primárias.
Mas uma coisa é certa: os americanos estão pessimistas num grau inédito na história do país, tirando a grande depressão dos anos 30. A guerra do Iraque conta, mas o pessimismo tem sobretudo a ver com factores económicos. O desemprego sobe, a crise do crédito aflige muitas famílias (que cortam no consumo) e a recessão parece inevitável.
Mas nos últimos quinze anos os Estados Unidos tiveram um notável crescimento económico, bem acima do europeu. Porquê, então, um descontentamento tão pouco americano e que não começou apenas há meses? Porque apenas entre um terço e um sexto dos americanos (consoante as sondagens) acredita, agora, que os filhos terão uma vida melhor do que a sua.
O colapso do “sonho americano” não se deve apenas, nem sobretudo, a circunstâncias conjunturais negativas. Recessões e crises houve muitas no passado, sem o pessimismo actual. A raiz deste tem a ver com o desequilíbrio entre a espectacular melhoria do nível de vida de uma minoria e a quase estagnação dos rendimentos da maioria.
Não apenas a pobreza não foi eliminada pelo crescimento económico das últimas décadas, como os salários reais do trabalhador médio americano subiram pouco e abaixo da produtividade, que deu um grande salto. Entre 1979 e 2005 os mais ricos (1% da população) aumentaram 228 % os seus rendimentos. Entretanto, a grande maioria dos americanos pouco lucrou com o forte crescimento económico dos EUA. Uma parte das famílias aumentou os rendimentos apenas porque mais mulheres foram trabalhar.
O problema não é apenas americano. Em 1975 três quartos dos japoneses consideravam-se da classe média, contra apenas 54 % hoje; entretanto, os japoneses que se julgam abaixo da classe média passaram de 20 para 37 %. E o vertiginoso crescimento económico da China está a acentuar as desigualdades de riqueza.
Nos EUA o capitalismo industrial – digamos, desde o aparecimento do Ford modelo T, em 1912, até por volta de 1970 – foi um democratizador económico, passando para a classe média grande parte dos proletários. Recentemente, pelo contrário, o leque dos rendimentos alarga-se cada vez mais.
O progresso técnico (informática, net, etc.) aumenta a procura de trabalhadores qualificados e desvaloriza o trabalho não qualificado. Este sofre, ainda, a concorrência dos baixos salários dos países pobres, que a globalização trouxe para o mercado mundial. E a nova organização do trabalho, que já não é de produção em massa, reduz a importância dos sindicatos.
A globalização financeira baixa a tributação do capital, extremamente móvel, enquanto sobre o trabalho (que se pode deslocar menos) aumentam os impostos. E Bush adoptou uma política fiscal favorável aos ricos. Acresce que a mediatização favorece os profissionais conhecidos, alargando a distância entre os seus rendimentos e os dos outros.
Estes factores explicam o desconforto da classe média americana. E como a maioria dos votos lhe pertence, os políticos estão atentos ao pessimismo.
As possíveis reacções políticas ao aumento das desigualdades de riqueza são de dois tipos. Um é o proteccionismo de esquerda e de direita, visível em discursos populistas contra a globalização, as multinacionais, a China, os imigrantes, etc.
A resposta dos EUA ao problema das desigualdades crescentes deveria, porém, ser outra. Implicaria o reforço da protecção social, quase inexistente para dezenas de milhões que não têm seguros de saúde.
Mas os EUA não devem copiar aquilo que precisa de reforma no modelo social europeu. Até porque a previdência e os apoios na saúde também sofrem apertos financeiros na América. A esperança é que os futuros dirigentes americanos consigam inovar na protecção social. Não a negando, por exemplo, aos trabalhadores temporários ou a tempo parcial. E dando uma rede de segurança aos muitos que, tendo emprego, vivem na permanente angústia de o perderem.
Avançar com um “new New Deal” adaptado ao nosso tempo requer uma fortíssima liderança política (como era a de F. D. Roosevelt). Gostava de acreditar que ela irá aparecer em Washington.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Uma proficiente leitura socieconómica acerca do que se passa na América neste 1º quartel do III milénio - que explica alguns dos factores do seu declínio, que se espera seja de ordem conjuntural. No final, Sarsfield Cabral deseja algo que, se calhar, todos nós buscamos nas sociedades europeias do Velho Continente: um new Deal adaptado ao nosso tempo. Envie-se xerox deste artigo a José Sócrates - talvez ele aposte na ideia e a desenvolva neste ano e meio de mandato restante.