A corrosão do carácter: evocação de Richard Sennett
Quer no âmbito político, no quadro social, familiar ou mesmo interpessoal quem já não ouviu a expressão corrosão de carácter - de Richard Sennett, na imagem supra. Apesar da infelicidade da realidade que aquela expressão encerra, a fórmula é feliz porque conceptualmente eficiente.
Creio que com ela Sennett procurou evidenciar algumas das consequências do trabalho de horário flexível na vida pessoal e no carácter dos trabalhadores e até no facies duma sociedade inteira. Desta feita, Sennett argumenta que a ênfase depositada nos métodos de trabalho flexíveis pode produzir bons resultados, mas também pode gerar a tal corrosão de carácter de que o autor nos fala e que originou o título do seu livro, já com uma década.
A questão que se coloca a este nível decorre do facto do sistema de expectativas colocado pelos trabalhadores assentar na flexibilidade, na adaptabilidade, na versatilidade e até na disposição de as pessoas correrem riscos, o que contrasta frontalmente com aquelas outras características intrínsecas ao carácter forte (e tradicional) das pessoas - assente nos valores da lealdade, do compromisso, da confiança, na realização de objectivos estratégicos por efeito de convergência de esforços.
Na linha de Sennett, e não só, este tipo de tensões de conjunto de valores contrapostos são inevitáveis nesta era de globalização competitiva - marcada pelo risco social, pela reflexividade e pela tensão e competitividade permanentes em que as pessoas são obrigadas a viver, quase em regime de cativeiro, embora sob a aparência duma certa normalidade.
Ou seja, na prática Sennett elogia - por um lado - a maior liberdade na orientação dada à trajectória individual de cada pessoa, mas, por outro lado, existe o reverso da medalha corporizado nos constrangimentos rígidos que acabam por ser impostos às pessoas nessas (novas) relações (laborais e sociais).
Em lugar de investimento numa carreira para toda a vida, exige-se agora às pessoas polivalência no trabalho em equipa, deslocando-se de tarefa em tarefa, sempre com imensa versatilidade. A lealdade, por outro lado, relativisa-se e deixa de ser um valor kantiano ou uma qualidade moral absoluta de per se - mas numa obrigação quase legal (senão mesmo canina, em certos meios ou feudos políticos e empresariais). Paralelamente, em vez duma carreira coerente, linear e previsível o que encontramos na sociedade aos trambolhões é uma sucessão de empregos - também aos tropeções e a rebolar por uma ladeira abaixo - fazendo com que os conceitos de carreira, laços sociais, objectivos estratégicos ou outros - tenham implodido por ter, precisamente, desaparecido essa sociedade da confiança que hoje muitos reclamam mas só poucos exercitam.
Dito isto, todos nós hoje, seja na esfera política, empresarial, académica ou de qualquer outro tipo organizacional somos peões efémeros dum palco cujas luzes, coreografia, encenação e argumento está constantemente a mudar ante os olhos do auditório. Um auditório (leia-se, a sociedade) que também já não consegue avaliar (porque se encontra alienado) que riscos valerá a pena correr, que regras subscrever para obter as devidas promoções ou pensar noutras quaisquer recompensas.
Neste colete de forças torna-se problemático saber conduzir uma vida com objectivos estruturais e, ao mesmo tempo, enfrentamos objectivos de curto prazo. E a conclusão que de tudo se impõe extrair é óbvia: o capitalismo é um sistema tão bom quanto mau. Bom porque assiste como nenhum outro ao progresso material das sociedades e oferece um quadros de eficácia e de eficiência na vida organizações que nos torna produtivos e competitivos sob a capa soberana do mercado; mau porque este novo capitalismo de casino, profundamente especulativo, é aquele que mais corrói a personalidade das pessoas, minando também a argamassa que as liga entre si.
Por vezes o melhor que a vida pode ter é irmos alí às Amoreiras do arqº Taveira tomar um café e respirar, e se o podermos tomar com "alguém" excepcionalmente inteligente, culto e também moralmente sólido - percebemos que este mundo ainda é povoado por pessoas de excepção que nos dizem: atenção, a vida é essa porcaria toda, mas temos a obrigação (e o dever) da saber fazer melhor...
Este texto também é, óbviamente, para esse amigo de excepção que tive a feliz sorte de ter. Afinal, depois das crianças, o melhor do mundo são mesmo os amigos... As torradas, e o cheiro delas, vêem em 3º lugar
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