segunda-feira

Ninguém devia partir para sempre com esta idade

Obituário de Armando Rafael (1963-2007): Ninguém devia partir para sempre com esta idade
PEDRO CORREIA LEONARDO NEGRÃO (imagem)
"A morte deixa-nos sempre um sentimento de perda. Mas quando parte alguém que estimamos muito, essa perda parece-nos irreparável. Foi assim que ficámos, em estado de estupefacção, ao sabermos ontem a notícia da morte do Armando Rafael. Morte súbita, morte estúpida, morte absurda. O Armando já não estava cá, mas era ainda um dos nossos. Olhávamos para a secretária que foi dele até há pouco e a todo o momento julgávamos vê-lo ainda ali sentado. Ele era um dos jornalistas mais qualificados do Diário de Notícias. Licenciado em Direito, tinha uma vasta cultura e conhecimentos enciclopédicos sobre as matérias que mais o apaixonavam. E eram muitas - da política à economia, da gastronomia ao desporto. Sportinguista, costumava jogar futebol com amigos de várias convicções clubísticas.
E amigos era o que não faltava ao Armando Rafael. Nascido em 1963 em Moçambique, viveu com o coração repartido entre África e a Europa. Já em Lisboa, nunca deixou de se interessar pelas questões africanas. No DN, foi durante muitos anos o maior especialista nesta matéria, tendo assinado várias reportagens nos países da África lusófona, onde dispunha de uma vasta rede de fontes de informação.
A paixão pela África lusófona tinha natural extensão a Timor-Leste, onde conhecia todos os principais políticos. O acompanhamento, dia a dia, da última grande crise política em Díli, em 2006, foi um dos seus trabalhos jornalísticos de maior fôlego, tal como as reportagens que fez na Guiné-Bissau ou em Londres, quando ali ocorreu o atentado bombista de 11 de Julho de 2005. Sabia bem que um jornalista não trabalha só para a história do dia: trabalha também para a História. Maiúscula.
Não teve outro jornal senão este. Trabalhou no DN desde 1989 até há dois meses, com um interregno durante o Executivo de António Guterres, em que aceitou chefiar os gabinetes de dois ministros - António Vitorino, primeiro; António Costa, depois. Tinha militado na Juventude Socialista, estava geralmente em sintonia com o PS, mas fez sempre questão de separar as águas. A tal ponto que ao retomar funções no DN, por vontade própria, não voltou a assinar artigos sobre política nacional.
João Fragoso Mendes, que editava a secção política no final dos anos 80, lembra-se dos primeiros tempos dele como estagiário: "Revelava uma perspicácia invulgar, tinha uma curiosidade intelectual acima da média, era muito responsável." Apesar da diferença de idades, ficaram amigos para a vida. O Armando era assim: exímio na arte de cultivar amizades, o que não lhe fazia perder o espírito crítico quando julgava ter razão. E tinha, muitas vezes.
Mário Bettencourt Resendes dirigia o DN quando o jornal foi reestruturado, em 1992. Convidou-o para editor da Política e lembra-se dele enquanto "jovem e talentoso jornalista, que acompanhava muito bem a actualidade". Foi outro amigo que o Armando manteve até ao fim. "Se a vida tivesse sido mais generosa com ele, não duvido de que acabaria por assumir um papel destacado no jornalismo ou na política", acentua o actual provedor dos leitores do DN.
O Armando funcionava, além do mais, como um grande traço de união entre todos os camaradas de trabalho. Isto ficou bem evidente quando foi membro do Conselho de Redacção do jornal: mesmo em situações de crise, sabia estabelecer pontes entre pessoas de diversas sensibilidades. Isto não era calculado, nem estudado: era um dom nato dele. O que não o impedia de ser frontal, mesmo com os amigos.
"Não cometam o erro de ver os factos através do buraco da fechadura", dizia aos colegas mais jovens, recomendando-lhes a leitura da imprensa internacional. Era, aliás, o que fazia enquanto saboreava o café da manhã. Tinha uma visão cosmopolita das notícias e gostava de acentuar a importância da memória nas redacções - convicto de que um jornalismo sem memória está longe de servir os leitores. Conceitos que pôs em prática nas diversas funções que desempenhou no DN: além de editor político, foi editor das secções de Internacional e Media. Era redactor principal desde 2004.
O Armando deixou-nos: em Setembro aceitou um convite de António Costa - de quem era amigo de longa data - para chefiar o seu gabinete na Câmara Municipal de Lisboa. Foi nesse mesmo gabinete que morreu subitamente, na noite de sexta-feira. Já era tarde nesse dia, mas era ainda muito cedo para partir.
Hoje, às 14.30, será rezada missa em sua memória na Igreja de São João de Deus, à Praça de Londres, em Lisboa. O funeral realiza-se pelas 17.00 para o Cemitério do Alto de São João. Muitos dos que o acompanhámos em várias etapas pessoais e profissionais não faltaremos à despedida. Mesmo assim, ainda levará muito tempo até nos habituarmos a olhar sem estranheza para o lugar que era o dele neste espaço afectivo que é sempre uma redacção de jornal. Esse lugar está agora absurdamente vazio, estupidamente vazio. Ninguém devia partir para sempre aos 44 anos."