Três e Meia - por António Vitorino -
O sublinhado é nosso, a foto já integra o Rizoma, é de quem a agarrar.
TRÊS E MEIA [link]
António Vitorino
jurista
De repente, numa tarde outonal de 2007, em Torres Vedras, reabriu-se a querela constitucional em Portugal. Poderia começar assim uma crónica sobre a intervenção do novo líder do PSD no XXX Congresso daquele partido no passado fim-de-semana.
Confesso que não esperava que o dr. Luís Filipe Menezes escolhesse o tema constitucional como bandeira da sua nova liderança. Não há no País um clamor por uma reforma constitucional, nem me parece razoável que se leve a débito da Constituição de 1976, sobretudo após a revisão constitucional de 1989, as dificuldades com que o País se confronta.
Mas adiante, cada um é livre de escolher as bandeiras que quer para se afirmar. E decerto a iniciativa do novo líder do PSD terá calado fundo no coração do dr. Alberto João Jardim que, reivindicando desde sempre uma nova Constituição, deixou no fim-de-semana passado de ser o último dos moicanos...
Tanto mais que a proposta do novo líder do PSD não se ficou por uma tímida revisão constitucional. Trata-se de reivindicar mesmo uma Constituição inteiramente nova. Moderna e que reforce as condições de governabilidade. Só que apresentada assim a nova Constituição, não se diz muito quanto ao seu conteúdo.
Normalmente uma Constituição anda associada a um regime. A Constituição de 1976 está associada ao regime democrático instaurado com o 25 de Abril de 1974. O seu processo de depuração arrastou-se por 13 anos, passando pela reforma do sistema político em 1982 e pela reforma da organização económica em 1989. Depois desta evolução haverá decerto ainda normas muito datadas, mas inegavelmente o texto em vigor corresponde a um pacto político em que participaram ao longo do tempo todos os partidos com maior ou menor assiduidade e adesão.
Uma nova Constituição aponta para uma refundação do regime democrático. Estaríamos assim a passar da III para a IV República. Convenhamos que para uma proposta de tamanha ambição e alcance as justificações apresentadas foram parcas e não fundamentadas.
Mas seria errado considerar esta proposta como uma tirada típica dos arrebatamentos de um discurso de congresso partidário.
Porque o orador não se eximiu a dar exemplos daquilo em que a "nova" República diferiria da actual.
Para começo de conversa, explicou-nos que a "nova" República seria semipresidencialista como a actual. Só que com reforço dos poderes do Presidente da República. Aqui decerto deu um desgosto ao seu provável líder parlamentar que, quando da dissolução do Parlamento em 2005, se rebelou contra os poderes presidenciais e preconizou mesmo a sua redução (ficando a um passo de defender o parlamentarismo puro...).
Mas os poderes do Presidente seriam reforçados no exercício do direito de veto em relação às leis do Parlamento. Tirando a inovação de sujeitar a uma maioria qualificada os vetos sobre leis em matérias de justiça, nos outros dois casos, relações externas e defesa, o veto só poderia ser superado por maioria especialmente qualificada. Só que nestes dois últimos casos a superação do veto já requer dois terços dos deputados... Logo mais do mesmo!
Sobre a extinção do Tribunal Constitucional, a proposta não tem nada de novo. E esconde que o processo de composição do nosso Tribunal Constitucional é o mesmo do que a maioria dos demais tribunais congéneres dos países europeus. Acresce que já foi demonstrado que a peregrina tese das decisões sete a favor e seis contra não chegam a 3% das fiscalizações abstractas. Uma "nova" República por 3% não será exagero?
Resta o último argumento: o fundamento dos poderes autonómicos regionais. Mas aqui a explicação é de uma notável vacuidade: os limites dos poderes regionais seriam apenas os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Mas quais são no caso? Política externa, defesa e justiça (os tais do veto reforçado do Presidente da República), tal como nos sistemas federais? Ou as regras sobre direitos, liberdades e garantias também, como garantia da igualdade de todos os portugueses? Mistério!
Para quem queria fundar uma "nova" República, convenhamos que houve pouco cuidado nos detalhes. Ou não será mesmo uma IV República, mas antes uma República três e meia?
Obs: Este é um artigo tão sério quanto nos faz cair da cadeira, a rir. Ou seja, rimo-nos da República e do seu sistema de poder através da vacuidade teórico-política proposta por Meneses para se afirmar neste novo ciclo do psd: a revisão constitucional. Mais uma ideia à ppd, como diria o outro... É o que dá fazer congressos no "Entroncamento" após directas, sendo que nenhuma das propostas ventiladas por Meneses valorizariam ou aumentariam a eficácia do funcionamento do sistema político em Portugal. Aliás, António Vitorino só detectou contradições nessas propostas - que devem ter sido confeccionadas às "três e meia" da madrugada à saída da auto-estrada de Torres Vedras em direcção a Gaia e que nem para experimentalismo político servem.
Só me surpreende é como é que António Vitorino arranja tempo para a sua vida profissional, a sua intervenção na esfera pública e ainda vem aqui dar umas aulas de Direito Constitucional ao Meneses e ao ex-assessor do Sá Carneiro que agora vai passar a andar por aí, no hemiciclo... Já agora estou curioso para ver o que Marcelo irá comentar acerca desta vacuidade política do seu correlegionário da Lapa na missa de Domingo e, por extensão, da assinatura do Tratado reformador de Lisboa. Por mim, não terei dúvidas: se fosse Marcelo que o assinasse estaria neste momento a dar mergulhos no rio Tejo, lá de cima da Ponte 25 de Abril.
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