domingo

Arnaldo Jabor: um "relojoeiro" a fazer cirúrgia na sociedade brasileira

No início deste ano esta pérola do jornalismo de ideias brasileira esteve em Lisboa, mas como somos uns grunhos, ou melhor, como os media portugueses são uns idiotas, pouca ou nenhuma importância deram a este homem estruturado de calibre excepcional que é Alnaldo Jabor. Além de jornalista é também ensaista, ficcionista e um homem de cultura. Luta contra o capitalismo selvagem que nos transforma em produtos transacionáveis e nestas suas crónicas reflecte algumas dessas preocupações cuja resenha aqui sistematizo aproveitando o trabalho de casa que sobre ele fez o jornalista José Barroso, que então fez um artigo sobre ele, e bem.
Vejamos dois takes pela lente afinada e pela pena incisiva de Jabor: o mundo do futebol e do vedetismo e a miséria da política, afinal, a miséria de todos nós, mais uns do que outros, certamente.
O futebolista Ronaldo e a modelo Daniella Cicarelli. Sempre tive inveja de Ronaldinho. Não só dele, com seus dentinhos separados e os cem milhões de dólares, beijado por multidões. Invejo também Cicarelli pelo mistério feminino, por sua luz de ninfa, que eu, homem, nunca entenderei. O problema de Daniella é a perfeição. (...) Fiquei desiludido com o casamento. Tive uma decepção romântica. Esperava que fossem felizes para sempre. Mas devo confessar que desde o início esse romance me incomodava. (...)
Ele que já tinha papado as mais belas mulheres do país, todas brancas, claro, quis transformá-la numa nova Cinderela. Só que talvez a Cinderela fosse ele, casando com a princesa, ele um ex-pobre e mulato claro. Esse romance sempre me pareceu uma 'bandeira' viva do Brasil de hoje: narcísico e romântico, liberal e racista, democrático na mídea, mas excludente na vida real. Ronaldinho é um fenómeno, mas é de origem pobre que subiu na vida. Como um Lula. (...) Aí, veio o casamento, no castelo de Chantilly. (...) Depois, chegou o cotidiano e os dois se encontraram sem identidade. Quem somos nós? Que fazemos aqui se não nos conhecemos? (...) E não foram felizes para sempre."
Vejamos agora o take relativo à miséria e política:
"A miséria era o grande capital do Governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC [Fernando Henrique Cardoso] ou os tucanos [o PSDB] quiseram cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado. Mas a miséria tem sido ingrata com o PT. Ela se recusa a comer do Fome Zero, ela desmoraliza a eficiência do Bolsa Família. O erro dos que desejam acabar com a miséria é achar que ela está 'do lado de fora' de nossa vida, do 'lado de fora' dos aparelhos de Estado, de nossa vida social. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro.
A burocracia é miséria, corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria mental já invadiu a Câmara dos Deputados. A miséria não está na periferia e favelas; está no centro de nossa vida brasileira. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados."
Obs: O que Jabor diria acerca da farsa protagonisada pelos pais de Madeleine!? Certamente, já escreveu algo sobre o assunto. Um dia postamos aqui a sua opinião.
PS:
Mais uma pérola de Jabor, desta feita enviado por uma amiga, MM que de RGS teve a bondade de me o enviar. Obrigado.
DE ONDE VIRÁ O GRITO?
Num texto anterior introduzi o conceito de "Ressentimentos Passivos ". Para relembrar, lá vai um trecho: "Você também é mais um (ou uma) dos que preenchem seu tempo com ressentimentos passivos? Conhece gente assim? Pois é. O Brasil tem milhões de brasileiros que gastam sua energia distribuindo ressentimentos passivos. Olham o escândalo na televisão e exclamam "que horror". Sabem do roubo do político e falam "que vergonha". Vêem a fila de aposentados ao sol e comentam "que absurdo". Assistem a uma quase pornografia no programa dominical de televisão e dizem "que baixaria". Assustam-se com os ataques dos criminosos e choram "que medo". E pronto! Pois acho que precisamos de uma transição "neste país". Do ressentimento passivo à participação ativa".. Pois recentemente estive em Porto Alegre , onde pude apreciar atitudes com as quais não estou acostumado, paulista/paulistano que sou. Um regionalismo que simplesmente não existe na São Paulo que, sendo de todos, não é de ninguém. No Rio Grande do Sul, palestrando num evento do Sindirádio, uma surpresa. Abriram com o Hino Nacional. Todos em pé, cantando. Em seguida, o apresentador anunciou o Hino do Estado do Rio Grande do Sul. Fiquei curioso. Como seria o hino? Começa a tocar e, para minha surpresa, todo mundo cantando a letra! "Como a aurora precursora / do farol da divindade, / foi o vinte de setembro / o precursor da liberdade" . Em seguida um casal, sentado do meu lado, prepara um chimarrão. Com garrafa de água quente e tudo. E oferece aos que estão em volta. Durante o evento, a cuia passa de mão em mão, até para mim eles oferecem. E eu fico pasmo. Todos colocando a boca na bomba, mesmo pessoas que não se conhecem. Aquilo cria um espírito de comunidade ao qual eu, paulista, não estou acostumado. Desde que saí de Bauru, nos anos setenta, não sei mais o que é "comunidade". Fiquei imaginando quem é que sabe cantar o hino de São Paulo. Aliás, você sabia que São Paulo tem hino? Pois é... Foi então que me deu um estalo. Sabe como é que os "ressentimentos passivos" se transformarão em participação ativa? De onde virá o grito de "basta" contra os escândalos, a corrupção e o deboche que tomaram conta do Brasil? De São Paulo é que não será. Esse grito exige consciência coletiva, algo que há muito não existe em São Paulo. Os paulistas perderam a capacidade de mobilização. Não têm mais interesse por sair às ruas contra a corrupção. São Paulo é um grande campo de refugiados, sem personalidade, sem cultura própria, sem "liga". Cada um por si e o todo que se dane. E isso é até compreensível numa cidade com 12 milhões de habitantes. Penso que o grito - se vier - só poderá partir das comunidades que ainda têm essa "liga". A mesma que eu vi em Porto Alegre. Algo me diz que mais uma vez os gaúchos é que levantarão a bandeira. Que buscarão em suas raízes a indignação que não se encontra mais em São Paulo. Que venham, pois. Com orgulho me juntarei a eles. De minha parte, eu acrescentaria, ainda: "...Sirvam nossas façanhas, de modelo a toda terra..."
Arnaldo Jabor