A revolta da classe média - por Francisco Sarsfield Cabral ; e a Lição de Aristóteles
(in Público, assinantes)
A Europa e os Estados Unidos talvez necessitassem de algo parecido com o New Deal
A revolta da classe média
Diz-se que o modelo social europeu está moribundo. O envelhecimento da população, com cada vez menos trabalhadores no activo a descontarem para um número crescente de pensionistas, traz um progressivo aperto financeiro à segurança social. E viver até mais tarde envolve não apenas mais gastos em pensões, mas também muito maiores despesas de saúde.
Subir impostos para financiar estes acréscimos de despesa não agrada a ninguém. Para salvar o que for possível do modelo social europeu são precisas reformas impopulares, no sentido de reduzir a protecção social para níveis financeiramente comportáveis.
Nos Estados Unidos o grau de protecção social é menor do que na Europa. Mesmo assim, também lá se acumulam dificuldades financeiras na saúde (que Hillary Clinton procurou, em vão, reformar) e na segurança social (aí foi Bush quem tentou, e falhou, a reforma).
Caminhamos, então, para um capitalismo selvagem, sem redes de protecção para quem fica para trás? Era assim no século XIX...
Seria um retrocesso de civilização, tanto mais inaceitável quanto as economias desenvolvidas, embora crescendo hoje mais lentamente do que nos anos 50 e 60 do século XX, são agora muito mais ricas do que quando surgiu o Estado-providência. Mas, se o imperativo ético da solidariedade não parece eficaz para evitar aquele retrocesso civilizacional, talvez outros motivos menos nobres o consigam.
Na grande depressão dos anos 30, Roosevelt lançou o “New Deal”, que ainda é o essencial do sistema americano de protecção social. Ora, actualmente algo parecido se torna necessário na América (e, em menor grau, noutras paragens, incluindo Portugal) para evitar a revolta da classe média.
A classe média tomou conta do Estado-providência, originalmente pensado para os mais pobres (grande parte destes, agora, está fora do sistema). Mas isso aconteceu, em larga medida, porque o capitalismo industrial do séc. XX transferiu para a classe média uma enorme fatia do proletariado.
Só que a democratização económica se inverteu nos últimos trinta e tal anos. As desigualdades regressaram em força. Com o alargar do leque dos rendimentos voltou, até, a estratificação social, típica da era anterior à revolução industrial. Vejam-se os condomínios fechados.
A tendência para o agravamento das disparidades de riqueza dentro da mesma sociedade não decorre apenas, nem sobretudo, de políticas ditas neo-liberais. Dois factores pesam aqui: a globalização e as novas tecnologias.
Ao lançar no mercado mundial centenas de milhões de trabalhadores com salários baixíssimos, a globalização trava as subidas salariais nos países ricos, principalmente de quem concorre directamente com artigos provenientes da China, Índia, etc.
Mais importante ainda, as novas tecnologias levam a grandes diferenças salariais entre quem se movimenta à vontade na informática e os outros, os info-excluídos. Acresce que a crescente mediatização da vida moderna promove distâncias abissais entre o que ganham os profissionais conhecidos do público e os ganhos dos obscuros restantes.
Assim, nos EUA a maioria da classe média vê os seus rendimentos estagnarem ou quase, enquanto muitos privilegiados se tornam milionários. Uma situação politicamente insustentável por muito mais tempo: a maioria dos votos está nas mãos dos que se sentem frustrados por não melhorarem o seu nível de vida. Os políticos americanos já perceberam o problema, mas não parecem virados para lhe darem a melhor resposta.
Há duas saídas possíveis para evitar a revolta da classe média. A primeira, reforçar, em novos moldes, a protecção social dos que estagnam. Por exemplo, através de subsídios aos salários baixos (como propôs o Nobel da Economia E. Phelps) ou seguros para contrariar a descida salarial de quem tem de mudar de emprego.
A outra solução é o proteccionismo. Alternativa fácil mas enganadora, porque voltada apenas para os efeitos da globalização, esquecendo outros factores que estão na raiz das disparidades de rendimentos. E sobretudo porque com o proteccionismo todos acabam por perder, como se viu nos anos 20 e 30 do século passado.
Talvez, mais tarde ou mais cedo, surja nos EUA um sucessor do “New Deal”. Mas é realista pensar que tal só acontecerá depois de muita asneira proteccionista, prejudicando não só os próprios americanos como os países pobres.
Francisco Sarsfield Cabral
Aproveitando a boleia do estimulante artigo (supra) do Francisco, inteligente e bem escrito, aproveito para debitar aqui uma reflexão de Outubro de 2004 - então publicado na revista Tempo. E como se trata da "destruição da classe média" - à qual muitos de nós pertence, cá vai a antiguidade... A lição de Aristóteles e a destruição da classe média em Portugal O processo de globalização em Portugal está exposto a linhas de fractura que opõe classes sociais cujos “skills” e mobilidade remetem o respectivo sucesso para o mercado (desregulado), hoje o maior inimigo da sociedade e do bom governo. Daí resulta uma severa tensão entre o mercado e os grupos sociais, com o governo entalado no meio. Por isso, o maior desafio para Portugal (e para a economia europeia e mundial), é tornar a globalização “amiga” da coesão das sociedades. Garantindo que a integração económica internacional não contribua para a desintegração social. Alguns exemplos já foram sinalizados nesse mapa da destruição: mapa da destruição da “pobre classe média portuguesa”: taxas moderadoras para os utentes do SNS; o fim dos passes sociais; o fim das portagens virtuais (Scut); alteração dos benefícios fiscais. Esfrangalhando, assim, a “excelência” da classe média/CM, que é quem financia a sociedade e alavanca o sector produtivo da economia. Aprendi com Aristóteles, porventura, desconhecido para o titular das finanças, que em todos os países há três espécies de homens: uns muito ricos, outros muito pobres e outros que estão no meio, entre os dois extremos: a CM. A receita apresentada, que interfere com os “sagrados” interesses das famílias lusas, prefigura o pior. Para o País e para a coligação. Vejamos: os ricos são demasiado favorecidos pela natureza e pela fortuna, rodeados de amigos e de servos, não querem nem sabem obedecer. Desde cedo são mimados e protegidos por essa arrogância e corrompidos pelo luxo que arrecadam dos postos que ocupam. Os recentes episódios (M. Amaral e Celeste Cardona na CGD), com nuances, reflectem a miséria moral do Portugal decadente, sob a estranha cumplicidade pró-activa do locatário das finanças; os pobres, incapazes de mandar, são dobrados pela miséria, arrastando-se diante dos outros. Resultado: os ricos mandam e traficam influências como pequenos déspotas; os pobres são desprezados e obedecem servilmente. Conclusão: o Estado só é composto de servos e déspotas, nunca de pessoas livres. Uns são ricos, poderosos e influentes; outros pobres, ignorantes e invejosos, no meio da turba. Afundados nesta inimizade, uns e outros, jamais poderão aceitar caminhar juntos. Resta a excelência da CM. A tal que é esfrangalhada pelas medidas que o PP toma em nome do XVI governo Constitucional neste Portugal bloqueado. Porém, a sociedade quer membros semelhantes, o que só se encontra no meio-termo. Ora é a CM que agora vê os seus interesses atingidos. Ainda por cima, são os mais inocentes, pois não desejam o bem alheio (com a paixão ignara dos pobres contra os ricos), nem possuem a soberba destes. Nenhuma sociedade civil é melhor do que aquela que é composta de semelhantes pessoas, superiores em número e em poder (relativamente aos extremos). Com a penalização da CM, inclina-se a balança para o lado de Sócrates, novel líder do PS (que anulou o clã Soares) que quer prevenir esse excesso para a reconquistar e ser Poder. Se a CM estiver em vantagem estabelece-se uma democracia; se forem os ricos, fixa-se a oligarquia incompatível com o interesse do Estado e o bem comum. O objectivo é fazer do Estado um agente que erradique os dois extremos (os muito ricos e os muito pobres), governando para o 3º elemento, firmando uma Constituição estável. Em “Autopsicografia da crise”, traçámos a máscara desse dominó, denunciando a composição das sociedades múltiplas: os democratas não se deixarão governar pelos oligarcas, nem estes por aqueles, por causa da sua mutua desconfiança. O árbitro deverá ser a CM, factor de diferenciação dos eleitorados, prevenindo novas clivagens (agora intrínsecas às pessoas): as crises do Estado nacional (proteccionistas/competitivos), do welfare-state (segurança social/risco individual), da crise fiscal (endividamento/fiscalidade) e do modelo de desenvolvimento (estabilidade/mudança). Cada uma destas clivagens (distinta das ideológicas do passado entre direita/esquerda, liberalismo/socialismo) indica uma relação de conflitualidade agravada com a agressão à CM. O Estado é mais depressa arruinado com a cobiça dos ricos do que com a dos pobres.
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